31.10.09

Rua Escura I



cães escuros a lamber os cantos da cidade,

línguas ásperas feitas às pedras e ao resto.

Manda os olhos e o medo por onde os pés não vão,

vidas por todo o lado.

abrigos órfãos de luz

onde a solidão se come às mãos cheias

e se canta baixinho para não acordar os vivos.

fomes que se matam escondidas.

As vozes e o querer dobram esquinas, a luz não.

De dia é fácil ser homem por entre os homens,

o dia é avenida do tempo, rua direita.

À noite o corpo tem pés ligeiros e surdos

e o tempo faz-se de muitas horas compridas.


(Ilustração de Marco Mendes)

27.10.09

Cosmogonia

Num tempo antigo o mundo era todo feito de noite. A Terra era uma pedra escura parada e morta num lugar que ainda não existia.

Nesse escuro sem fim o tempo durava muito tempo e os deuses jogavam à apanhada porque havia pouco mais que fazer.

Flávia era uma deusa e às vezes pegava na lua e corria pelo mundo alumiada pela sua luz frágil. Flávia gostava de saltar e de rir sozinha porque atrás dela vinha sempre Damião, também ele um deus que pendurava o sol na ponta de um pau e se apaixonava por Flávia porque pouco mais havia que fazer.

Uma dessas vezes em que Flávia corria, a lua estava nova e ela tropeçou na terra e caiu. Flávia rompeu-se em mil pedaços que caíram sobre a terra. Dos seus bocados formaram-se os mares, as plantas, as mulheres e o invisível.

O deus Damião assustou-se ao deixar de ver Flávia e atirou o sol para a frente, o mais longe que pôde numa vontade grande de a encontrar. A luz fugiu-lhe e também ele tropeçou na terra e caiu. Damião rompeu-se em mil pedaços que caíram sobre a terra. Dos seus bocados formaram-se os rios, os animais, os homens e os poetas.

Flávia e Damião foram os pais da terra e de tudo o que é. Flávia continua ainda hoje a fugir e Damião a correr atrás dela. É por isso que o sol vai sempre atrás da lua, que os rios procuram o mar, os animais as plantas e os homens as mulheres. É também por isso que os poetas não sabem da felicidade.

22.10.09

O Coração à Frente

A vida, a morte, mais os amores e o que nos parta.

A gente na rua, a gente em casa, a gente que somos.

O coração à frente, como numa pega ou um primeiro amor.

Com o depois a vir depois, frio e morto visto daqui.

O último a mergulhar é uma coisa velha.

O mar não nos mata porque sabemos morder,

sabemos rir e sonhar o que o mar não sabe.

A dor vem amanhã ou depois, vem sempre,

vem porque tem de vir, sente-se nos pés

quando o salto é grande. No fundo do peito às vezes.

A dor é uma voz do corpo de quem salta.

O coração à frente, como quem canta.

O bem que nos chega é sempre pouco

para o mal que nos espera.

Vamos hoje fazer tudo o que nos falta,

música, amor, dádivas e tempos felizes.

Somos ainda tudo o que podemos ser,

somos ainda tantos, como os vivos.

Alguém que berre e partimos,

o último a mergulhar é uma coisa velha.

18.10.09

Acordar um dia XXXV

Acordar um dia que é domingo por todos os lados.

Nestes dias as casas vingam-se, as paredes tomam liberdades inusitadas.

Aos domingos, certos domingos, são as casas que nos habitam.

Alguns homens vão à missa, ondeCristo e cantigas mas não há salvação.

O domingo é um bom dia para se ser cão ou criança, a esses nãoquem os engane.

15.10.09

La Nave Va

Nunca se perde tudo, não é? Nunca se tem tudo não é?

Guarda, guarda quanto sto bene... adesso senza un braccio, senza cuore, senza un perché, cosi leggero, leggero...

O silêncio é grande calado em muitas línguas, parece escolha, um modo de não ser nada em lado nenhum.

La vita è sempre da un’altra parte, dopo l’angolo, dopo domani, dopo di me.

Nada de tragédias moço, não é assim que as coisas são? Os cacos são mais resistentes do que o prato, os santos que ajudam, a entropia aos pinotes.

Um homem sai à rua com uma manga vazia e há quem tenha pena do maneta, assim tão novo, assim coitado. Ninguém se lembra de chorar o braço que ficou em casa em manguitos sem fim. O pior de tudo é ainda aquela comichão no sovaco.

La nave va, venite, venite che partiamo verso un giorno migliore.

De toute façon, d’ici on peut bien imaginer la mer.

11.10.09

Cadernos de Perda II

palavras que se perdem por uma palha. Por erros, por esquecimento, por culpa dos dias. Ninguém perde uma perna que não conta, as palavras sim. A alguns sítios não se chega sem pernas nem certas palavras, mas nós sabemos rir e coxear vidas curtas cheias de cansaço.

lugares vazios onde as palavras correm à solta e gente sonha em agarrar gente. Nada é fundamental, nada é prescindível, sobretudo a certas horas. Levante o braço quem nunca acordou embrulhado em muito amor. Esse amor da manhã não é à prova de água, sai do corpo com sabão e fica às voltas muito tempo numa espuma branca que não é nossa.

As palavras também se perdem escritas, gritadas, gemidas, choradas, caladas em frente a uma pergunta. Levante o braço quem... pois. A um amigo como eu tiraram-lhe das tripas um quisto de meio quilo, mas ele sabia que era uma palavra posta ali com vergonha. O meu amigo diz agora que o silêncio é um ramo do fazer mal. Eu apalpo o ventre e vou dizendo que sim.

7.10.09

Πηνελόπη

Uma janela sempre aberta ao som do vento. O vento sabe empurrar o tempo, trazer o tempo para perto, onde ele é mais preciso.

O ar soprado toca o corpo sem pudor, sem perguntas. Dedos de um deus distante que um dia inventou arder.

Neste quarto antigo nãodias depois dos dias, nem tempo há neste lugar. Este quarto não é um sítio, choro e dor sem corpo.

Um grito a favor do vento chega onde quer chegar, vento também, sopro de dentro para fora.

À noite os corpos feridos não precisam de boca para falar.

6.10.09

Procura-se III


Coisas que se procuram:

- Sonhos todos novos, por estrear.

- Uma memória com um botão "Apagar" e outro "Escrever por cima".

- Gente como a gente.

- Algum tempo para tratar de assuntos.

- Aquela música que um dia me mostraram e eu já esqueci a letra e a melodia e a cor dos olhos dela.

- Os dias em que os discos tinham um lado B.

Pede-se o favor de responder com um aceno discreto à entrada ou à saída de qualquer coisa.



5.10.09

Cadernos de Perda

O deixado cai num poço que lhe pertence, um poço com nome.
Quem deixou fica lá longe à tona, à altura do mundo.
O deixado faz-se ridículo, esbraceja e grita como um boneco.
No olhar estrangeiro de quem deixou não há luz nem há já nada.

A pena é também distância, como a dor e duas pessoas.

4.10.09

Acordar um Dia XXXIV

Acordar um dia sem ter dormido.

De manhã a vida que tenho não me serve para nada, pelo menos hoje, pelo menos para mim.


2.10.09

Niña en Forma de Recta

La verdad es que ya no era una niña. O mejor, sí, era una niña. Había permanecido así cuando todos los demás habían olvidado lo que eran. Acaso alguien haya dicho "Ella es como es”, y tenía razón.

En cuanto aprendió a mirar decidió hacerlo tan sólo en una dirección, al frente. Todo lo demás era intuido, imaginado, conocido sin necesidad de verlo con sus ojos de mirar al frente. El afuera, el otro, lo diverso, eran para ella un mundo probable y rumoroso hecho de cosas y personas extranjeras, habitantes fantasmas de una realidad que no era la suya. Su mundo estaba allí, ante los ojos claros, sus ojos ceñudos, enfocados en una distancia que no se ve sólo con mirar.

Para la niña todo era simple y recto, lineal. Una variable de partida, otra de llegada y un pendiente personal; no existía nada más. Los que cruzaban su carretera eran para ella pequeños puntos, la intersección de una curva (la curva de una vida hecha de caprichos) y su recta. Los ríos no avanzan rectilíneos porque están condicionados por montes y valles que no saben ignorar, pero la niña cavaba los montes y construía puentes en los valles que no veía, que para ella no existían.

La distancia más corta entre dos puntos es un enorme anhelo. Un anhelo sin distracciones, un anhelo que no baila, que canta siempre la misma música de los días. El resto es espuma y tiempo perdido, un mar parado que se agita sin razones. Le gustaba a la niña la tierra firme donde los pies no resbalan, donde el pasado queda atrás, marcado por las huellas.

El amor le sucedió dos veces a la niña, dos amores fugaces, amores de trazado(1). La primera vez que se enamoró fue de otra recta que condescendió en serle paralela, un amor a una distancia pequeña, pero no desdeñoso. La distancia entre dos manos que casi se tocan, día tras día, casi, siempre casi. La otra vez no le llamó amor, nadie lo hizo, fue un acontecimiento que no aconteció. Una sinusoidal la cruzó diversas veces hasta que se volvió anharmónica, dejando tras de si el trazado de un accidente.

La niña sigue la carretera que debe seguir y no llora y no canta. Quien mira al frente no tiene tiempo para pensar mucho. Una variable de partida y otra de llegada, un trazo recto, casi continuo, casi. Los puntos blancos no le pertenecen, son espacios y tiempos de otros que tal vez un día quieran rellenar. Los anhelos de los otros son anhelos de otros.


Uma bela tradução de Silvia Capón que também é culpada de escrever e o faz muitíssimo bem (textos aqui e aqui).

Para ela um obrigado e um abraço.

 
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