31.3.09

O Marcelo (Quinta Parte)

Anos, tantos anos a trabalhar no mesmo sítio. Até todos os colegas se terem tornado em categorias mentais, mais do que as pessoas que provavelmente são. O tipo de bigode e mau feitio, o magricela insolente, a Dona São escondida por debaixo da base e do batom carmim, o João fininho que gargalha os dentes podres em trocadilhos ordinários e todos os outros, e ainda eu, eu que serei lá o quê de insuportável e ainda não me apercebi.

A presença do Marcelo naquele ambiente mudava a perspectiva. Éramos ainda tudo o que sempre fomos, o que sempre somos, mas éramos também diversos. Tínhamo-nos transformado em caricaturas, como aquele miúdo gordo de uma série juvenil que aturamos porque é a fingir. Passa o genérico, muda-se de canal e todos imitam a voz do miúdo para rir e fazer rir. A manhã passou assim, com actores de segunda a fazerem deles mesmos e o meu carimbo a servir de aplauso. Muito bem Dona São, bravo Senhor Altino, que impertinente este Joãozinho...

À hora do almoço o meu amigo fictício (para quem?) despediu-se invocando o desejo de dar uma volta pela cidade. Acrescentou algumas palavras sobre lugares e gestos antigos e eu, embora não percebendo, acenei-lhe como se piscasse o olho. Comi sozinho e entretive-me a inventar histórias para ele, coisas de amores ou ódios antigos, dessas com que se fazem novelas e fados populares. Mas por alturas da mousse interrompi-me com um pensamento; se o Marcelo era o meu amigo imaginário então era porque o imaginava, e se eu o imaginava então talvez estas minhas histórias se pudessem concretizar e suceder-lhe na realidade. Fiquei assustado com a perspectiva de tanto poder e já nem acabei a mousse, fiz por pensar noutras coisas; futebol, seios, cães aos caracóis, as contas por pagar, outros seios, algo que não fosse os destinos do Marcelo. Uma coisa é invocar alguém, por descuido ou lá pelo que seja, outra diferente é manipulá-la com se ela fosse uma marioneta e nós esses senhores que manipulam as marionetas. Não estava certo, ele que fosse lá à vida dele mais os gestos e os lugares que para manipulações chegavam-me bem as apólices e as indemnizações.
(continua)

Demográfica

- Achas que no mundo existe uma mulher certa para cada homem e um homem certo para cada mulher?

- Acho que no mundo existem demasiadas mulheres e demasiados homens.

- Queres dizer que assim é mais difícil de encontrar a alma gémea?

- Quero dizer que assim é mais difícil viver.

29.3.09

O Marcelo (Quarta Parte)

A manhã entrou cedo pela janela e esbofeteou-me sem piedade. Não sei se acordei ou se fui ressuscitado mas senti resistências obstinadas do corpo e da alma. No sofá jazia um Marcelo ressonante e baboso num quadro muito pouco digno. Olhei para a rua na esperança de ver passaritos ou as flores de alguma vizinha, alguma coisa com ares de redenção; mas quê, uma senhora barbuda mexia nas tripas de um contentor e o miúdo do 1º esquerdo fazia-me piretes com a língua de fora. Bom dia mundo, só um bocadinho que eu já vou.

Quarenta minutos bem contados, era o tempo que eu tinha até dar entrada no escritório. Era o tempo exacto para um duche a correr que não garantia a imaculabilidade de algumas concavidades do corpo, depois a roupa ao acaso enfiada à pressa e um café instantâneo com duas bolachas ligeiramente obsoletas. Estava eu a terminar a segunda quando entrou na cozinha o Marcelo. E que Marcelo... tinha vestido o meu fato de cerimónia com a gravata às flores, calçado os sapatos de verniz e o cabelo penteado com esmero. “Vamos trabalhar?”. Eu estava com pressa, ressacado, sem paciência, suspirei e lá fomos os dois.

Eu não sou um executivo. Tenho um emprego precário numa seguradora onde passo o dia a arquivar apólices, a avaliar pedidos de indemnização e a remeter qualquer decisão por mais mesquinha que seja para os meus superiores hierárquicos. É isso que eu faço dia após dia, levar papéis de um sítio para o outro, passar letras para um computador e marcar as horas que perco com o carimbo da empresa. A vida desperdiçada para a poder ganhar, a vida vendida por um salário mínimo e meio e ninguém que me dê mais.

O Marcelo não via as coisas pela minha perspectiva, parecia até divertir-se naquele ambiente austero. Passeava pelos corredores com um ar sério e pedante, mirava os ofícios com um olhar circunspecto e assistia às reuniões de chefia como se fosse parte interessada. De vez em quando passava pela minha secretária e perguntava-me com um ar paternalista “Está tudo a andar rapazote?”. Enervava-me aquele seu fazer de conta, mas ao mesmo tempo dava-me vontade de rir, como se o escritório se tivesse transformado num palco e todos fossemos actores de um acto absurdo.
(continua)

28.3.09

Acordar um Dia XXII

Acordar um dia... sim, mais um acordar de mais um dia. Não é contudo uma grande avaria.
É fácil acordar do sono, mais difícil acordar da vida. Abrir os olhos antes que nos abanem, lavar a cara por via das dúvidas e dizer alto (no talho, no supermercado ou na missa)

“porra! que eu tenho estado a dormir”

O Marcelo (Terceira Parte)

Comeu-se, comemos. Ele mais do que eu, incomparavelmente mais do que eu. Uma vez saciados saímos para dar uma volta. Uma volta como quem diz... fomos até ao bar mais próximo onde continuámos as nossas estranhas práticas de consumo. Ele por debaixo da mesa e eu a pedir bebidas como se me ardesse o fígado. Ficámos embriagados em menos tempo do que o que leva a cantar “O Romance do Falso Cego” e se o sei é porque o Marcelo o cantou, e eu com ele. Não chegámos a acabar o romance, mas a certa altura isso deixou de ser importante.
Apercebo-me agora, mais do que quando aconteceu, da figura que devo ter feito. Os olhos fixos numa cadeira vazia, indicador espetado a bater o compasso e a voz fugidia a repetir os finais dos versos. Assim me terão visto os que me viram e melhor fora que não. Isto dos amigos invisíveis tem os seus encantos, mas não faz bem à imagem de uma pessoa.
Dali, para casa, ambos os dois num slalom virtuoso que nem precisava de obstáculos. E depois, depois risos e confidências como se tudo fosse natural e as noites pudessem terminar assim sem sentido.

Não me lembro do que foi dito, mas engracei com o tipo, sabia coisas de mim e tinha-me estima. Ri-me com ele e talvez tenha até chorado, foi uma dessas noites. Foi o início e não foi mau. O Marcelo viera para ficar, imaginário ou não era um tipo engraçado que ouvia o que eu dizia. Era também capaz de dançar em chinelos e declamar poemas empoleirado numa janela. Os meus poucos amigos não faziam destas coisas, eram reais mas eram chatos e a vida é curta e a vida é triste e eu precisava de um Marcelo, o resto são psicanálises e ciências que me não interessam.

(continua)

26.3.09

O Marcelo (Segunda Parte)

Eram inúteis as desculpas, o importante é que o meu amigo tinha fome e havia que alimentá-lo. Saímos os dois de casa e fomos até uma churrasqueira, dessas onde os pobres dos frangos passam os dias às cambalhotas bronzeando-se em frente à grelha.

A indumentária do Marcelo causava-me alguma apreensão. Vestia um pijama às riscas amarelas e trazia calçados uns chinelos do Pato Donald que lhe davam um andar estranho. Porquanto ele pudesse ser fictício, aqueles não eram preparos para sair à rua num dia sem terramotos. Lembrei-me então que talvez ele se apresentasse invisível a todas as outras pessoas, como nos filmes de domingo à tarde. Deixou-me sereno esse pensamento e senti-me até privilegiado, talvez eu fosse o único capaz de o ver e de o ouvir, como num filme de domingo à tarde. De resto tudo parecia confirmar tal hipótese; durante os duzentos metros que fizemos até chegar ao “Imperador dos Galináceos”, eu cauteloso nas minhas elucubrações e ele assobiando em traje de palhaço pobre, não vi que se voltasse uma só cara franzida em espanto ou censura. Tendo em conta o carácter conservador e moral do bairro onde eu vivia, em que uma camisola mais arrojada poderia votar o prevaricador ao desprezo ou ao degredo, ficava provada a invisibilidade total e capaz do excêntrico Marcelo.

Chegados ao “Monarca do Aviário” sentámo-nos num canto discreto e perante o olhar desconfiado da empregada pedi uma dose capaz de alimentar uma matilha de lobos; enfim, uma pequena matilha de lobos medianos. O Marcelo esfregava as mãos de contente e pôs-se a cantar uma música parva que falava de uma estalajadeira gorda que tinha uma filha gaga. Que sítios estranhos deve frequentar a malta imaginária.

Esperávamos pela comida e eu tentava saber da sua vida fazendo-lhe todo o tipo de perguntas abstrusas. De nada valeram os meus esforços, ele respondia-me com frases retorcidas e incompletas que interrompia a cada dois segundos para espreitar a empregada. Acabei por desistir e lá chegaram os frangos acompanhados por algumas batatas vividas e uma salada inconsolável. O Marcelo lançou um grito de guerra e meteu-se debaixo da mesa de onde me pediu uma coxa, aparentemente a sua parte preferida. Enquanto mastigava alarvemente explicava-me por gestos que assim se evitava o assombro dos outros clientes.
Tinha razão o Marcelo, mesmo no “Reino dos Galiformes” uma coxa a voar sem frango era coisa de admiração.
(continua)

25.3.09

O Marcelo (Primeira Parte)

Foi um dia, ao chegar a casa pela tardinha. Eu abri a porta do quarto, como às vezes abro, e o Marcelo estava deitado na cama a ler um livro e a assobiar. Fiquei espantado, claro que fiquei espantado, mas o Marcelo não. Olhou para mim, sorriu como quem sabe coisas e disse boa tarde, depois voltou ao livro. Eu disse também boa tarde e pousei a pasta e pousei a gabardina.

O Marcelo estava sereno e eu não soube logo o que fazer. Esperei um bocado, sentei-me numa cadeirita que eu lá tenho e fiquei a olhar para ele à espera que algo acontecesse. Ele terminou o capítulo, dobrou o canto da página, calou o assobio e pôs-se de pé sempre a sorrir. Apresentou-se, disse-se encantado por me conhecer e agradeceu-me pela oportunidade. Ora eu continuava perplexo, mas ia dissimulando, disse-lhe que não tinha nada que agradecer, que o prazer era todo meu e como quem não quer a coisa perguntei-lhe exactamente a que oportunidade se referia ele (eu sou por vezes de uma grande subtileza). O Marcelo riu à gargalhada e eu ri também, por simpatia e entretenimento. Ele então contou-me tudo e eu admirei-me muito e mais do que já estava, ficando mesmo bastante admirado.

O que o Marcelo me disse é que ele era meu amigo imaginário, o único, pelas informações de que dispunha, mas ainda que outros houvesse não se arreliaria ele por tão pouco. Que sabia que eu tinha problemas e dormia mal, da vida que não me corria a direito e das minhas diversas angústias. Assim sendo, decidiu aproveitar o meu sono atropelado da noite anterior e infiltrar-se por entre a malta duvidosa que me abanava os pesadelos. Logo que chegou a manhã e a farândola partiu para outros reinos, o Marcelo escondeu-se numa zona escura da consciência e ficou ali, à espera que eu acordasse. O resto fora fácil, assim que eu mal abri os olhos enramelados, ele deslizou para debaixo da cama e ficou caladinho até eu sair de casa.
“Tenho fome” disse-me ele logo a seguir e eu lembrei-me que de facto não tinha em casa nada que se comesse. Nestas ocasiões se apanham os desprevenidos, tivesse eu um pouco de pão e um naco de queijo e nenhuma visita, por mais inesperada, me faria passar vergonhas.
(continua)

24.3.09

Expectativas

-Sabes, no fundo sou um tipo razoavelmente bem sucedido
-E isso chega-te?
-É melhor que nada
-Sim, qualquer coisa é melhor que nada
-Olaré!
- ...
- ...
- Sabes, mestes-me um certo nojo.

Teoria da Evolução

No princípio era um ser unicelular capaz de se replicar. Este desenvolveu-se em bactérias, depois algas, esponjas e anémonas. Algumas plantas e animais primitivos começaram então a invadir a terra e pouco depois temos os primeiros insectos e anfíbios. Seguiram-se então os répteis que deram origem aos mamíferos.

Os mamíferos evoluíram rapidamente e tornaram-se cada vez mais complexos até surgirem os primeiros símios, os Australopitecos. Estes dão lugar ao Homo Erectus, depois aos Neandertais, e cerca de 130 mil anos antes de Cristo surge o primeiro Homo Sapiens. No XXX século d.C. vêem-se os primeiros Super Homens que rapidamente evoluem para Semideuses e nos finais do XXXIV século chegam finalmente os Deuses Maiores.

A partir desse momento tudo se tornou mais complexo e a evolução segue de forma independente em cada um dos mundos criados por estes Deuses. Existe contudo uma fórmula inicial comum e um procedimento bem estabelecido que consiste em usar o pó do solo para formar um ser de sexo masculino e dar-lhe vida através de um sopro divino. Um outro truque muito popular é o de tomar uma porção desse ser primevo e fazer dela uma fêmea da mesma espécie.

A razão para este comportamento padronizado por parte dos Deuses é ainda obscura e segundo alguns estudiosos deve-se a um mito arcaico proveniente da herança remota deixada por algumas sociedades de Homo Sapiens.

22.3.09

Revelação

E um dia néscios e sábios saberão que as estrelas do firmamento e as areias dos desertos não são em número infinito. São na realidade muito menos, cerca de metade.
O próprio Universo tampouco é infinito, tem sensivelmente a mesma largura mas é um bocadinho mais curto.

20.3.09

Perspectiva

Atracção havia e era forte, mas enfim. Tínhamos demasiadas diferenças pessoais, linguísticas e culturais para que a coisa pudesse funcionar.
Também é verdade que ela pertencia a uma outra espécie animal, e isso às vezes...

18.3.09

Manhã de Verão

De todos os mistérios certos e atempados não há nenhum mais habilidoso no agodelhar a gente do que o primeiro sol de Primavera. Esse sol malfazejo que chega assim um dia e se põe a dar voltas e a dançar como se não fosse ainda Inverno nas cabeças agasalhadas. Passa uns meses na América do Sul, deita-se pingado de rum cansado de dar à perna e um dia acorda com desejos de norte. Ele que venha e nós que o aturemos...

O Carlos acordou e abriu a janela desconfiado, cheirava-lhe a Verão. Mal deu a volta ao trinco foi empurrado com violência e ficou no chão a apanhar com a enxurrada de luz que esperava a madrugada para entrar. Ah luz de um raio, imprecou em pleonasmo o pobre Carlos, ai ele é sol e Verão e coiso? Levantou-se e tomou um banho a correr e a cantar, depois vestiu uma camisa às cores e saiu de casa aos saltinhos com o assobio em tom maior.

Quando chega o primeiro sol o Carlos fica cheio de tesão, apetece-lhe copular com tudo, árvores, montanhas, mar, sereias e crustáceos, tresvaria. Os amigos conheciam-lhe os hábitos e por esses dias nem se chegavam perto, evitavam-no como à peste. O Carlos começou a ronda dos dias felizes, passeou o sorriso guloso pelas esplanadas e pelos jardins públicos, sempre à procura de vítimas. Mas fosse pelo matutino da hora ou pela precocidade do estio, ninguém parecia ser sensível ao seu entusiasmo, e ele que rebentava de entusiasmo... Lembrou-se então de um café manhoso onde por vezes apagava as bebedeiras com galões e torradas. Era um sítio miserável mas abria cedo e era frequentado por outros vestígios nocturnos, em particular pela Teresa marreca.

A Teresa era uma mulher dos homens, passava a noite nas avenidas com a desculpa de pagar um curso onde nunca esteve inscrita e de alimentar um filho que um dia haveria de ter. O Carlos entrou e viu a Teresa pendurada no balcão, sentou-se a seu lado e perguntou se podia dar uma trinca na bola de Berlim. “Ó filho, a esta hora se quiseres dar trincas só se for num papo-seco” fazia-se difícil a donzela... mas ele tinha era fome, bola de Berlim, papo-seco ou côdea dura, o importante era o sol e a tesão, o resto era regateio.
Ela achava-lhe piada e sabia-o inofensivo, o sono baixou-lhe as defesas e lá saíram os dois de braço dado para se enfiarem na carripana do exaltado. A Teresa marreca fechou os olhos e quando os voltou a abrir tinha o mar à sua frente. No rádio do carro passava uma bossa-nova aos tropeções, ele despia-lhe o vestido e cantava os fins das frases com um entusiasmo de garoto. “Tens dinheiro contigo? Olha que eu não aceito cartões” ele ria e dizia que sim, baixaram o banco e lá se encontraram as expectativas e a benevolência.

Foi assim que o Carlos deu início ao Verão e a Teresa terminou o Inverno. As gaivotas voavam à volta de olhos quase fechados e davam graças a Deus por tudo se ter resolvido.

17.3.09

Acordar um Dia XXI

Acordar um dia muito sorrateiramente, levantar-se à má fila e sair para a rua matreiro. Trabalhar todo o dia cheio de malícia, jantar sozinho e fingido e depois voltar para casa ardilão. Deitar-se na cama e rir de tudo e de todos sem saber porquê.

16.3.09

Bem-Aventurados os Ignorantes

Comprou um carro novo, um fato italiano, um telemóvel de última geração e voltou satisfeito para o seu duplex renovado bem no centro da cidade.
O dinheiro não traz a felicidade, mas vá lá alguém explicar-lhe isso...

15.3.09

AVISO


No passado dia três do mês de Março, por incúria minha e com grande pesar e ranger de dentes, deixei um maço de folhas A4 manuscritas no Intercidades Lisboa-Porto ao descer de forma claramente precipitada na estação de Estarreja. Essas folhas A4 continham um manuscrito único de um romance por mim escrito e destinado a ser publicado em breve por uma grande editora nacional. Dirijo-me desta forma a quem o possa ter encontrado e tomado posse do mesmo.

1. Deixe-me começar por lhe pedir desculpa pela péssima caligrafia que desgraçadamente me acompanha desde os tempos da escola primária. Como terá notado, tenho por hábito fazer os “P” minúsculos muito semelhantes aos “F”, é um defeito que me atormenta e para o qual não encontro solução. Todavia se tiver a gentileza de observar atentamente a parte inferior de ambas as letras, notará que a maior espessura da linha é claramente identificativa da letra “F”.

2. Peço-lhe também que me escuse a ligeireza, ou porque não dizê-lo, o desleixo com que algumas personagens menores foram caracterizadas. Tenho por método o ir aprimorando de forma iterativa estas personagens até me dar finalmente por contente com o resultado, o que nitidamente não tinha ainda sucedido.

3. Finalmente gostaria de lhe dizer, embora naturalmente já tenha reparado, que falta ao manuscrito o último capítulo. Imagino-o decepcionado e pleno de frustração por assim se ver privado da chave de leitura capaz de dar sentido à narrativa e de elucidar o mistério construído ao longo das trezentas e doze páginas. Sinto-me na obrigação de lhe confidenciar que na realidade o Fagundes é o pai desaparecido da Mariana, que o Terêncio se escondeu todo o tempo na casa dos Pimental e que o anel estava desde o terceiro capítulo dissimulado no espanta-espíritos da Teresinha.

Atenciosamente,

O Autor

13.3.09

Acordar um Dia XX

Acordar um dia com os pés de fora, com as mãos de fora, com a cabeça de fora.
Acordar todo de fora de alguma coisa que não se sabe o que possa ser.

12.3.09

Coisas de Aqui

Mas às vezes não te apetece chorar? De chorar muito como se não precisasses de fingir tantas pequenas felicidades? Mas não acordas a meio da noite encharcado num sonho mais feito de ti e de dores do que todos os teus acordares?
Quantas vezes comes sozinho? Quantas vezes comes completamente sozinho? Quantos foram os jantares a um por falta de comparência? Não de outros, mas da parte de ti que deseja e aceita companhia?

A verdade é que tudo e todos parecem ir andando. O mundo vai sendo e tantos nele. As coisas acontecem, sucedem-se, criam-se e desaparecem e com elas, por entre elas, estão mãos, pernas e corações que batem a tempo indeterminado. Todos batem a compasso em esforços de vontade privada de desejo. Mas o que é importante é que as coisas vão acontecendo, agora isto, depois aquilo e a seguir nada. Sim, porque as coisas sobrevivem aos corações.

Mudemos de assunto.As tristezas não pagam dívidas e tu tens tantas, tantas dívidas e nem sabes como pagar ou que moeda usar. Dívidas para com outros, dívidas para com todos, dívidas para com um par de olhos miúdos que um dia verteram mais lágrimas do que tu poderias enxugar com as tuas palavras mal ditas e nunca sentidas. E mais as dívidas morais, os débitos originais a um Deus que compraste e a quem não dás uso. Depois tens também as dívidas para contigo, as promessas mudas e pequeninas, convictas e à má fé, os projectos bem desenhados e pensados com tanta miúça que pões à frente de ti, como se fosses um burro cego com tanta cenoura que já não vê nada à sua frente e trota sem saber para onde vai.

Mudemos novamente de assunto. Falamos do que quiseres. De que falam as pessoas? De que falas pela manhã com os outros como tu e os outros como eu enquanto mexes a bica e piscas o olho à empregadita? Do tempo? Dos filhos? Talvez fales do governo... E é bom falar do governo, é para isso que votamos, para termos alguém que escolhemos que nos possa entreter e que nos leve as culpas que nos sobram. Os reis tinham bobos e nós, democratas, temos um governo que é eleito livremente com bónus de gravata e muito mais habilidades. O espectáculo é caro, mas já que agrada a todos vale bem as horas de tédio que lhe deixamos cada mês. Abençoados sejam esses senhores de fato escuro e voz colocada a quem damos o que não temos para recebermos o que não nos faz falta.
Mas estende o ouvido e diz-me do que falam na mesa ao lado. Falam de quê? De televisão? E eu que me ia esquecendo... Telejornais, futebol, telenovela, debates actuais, e desgracinhas e itas e a puta que os pariu. Não é assim? E porque haveria de ser de outro modo? Se temos de ir andando, que seja assim, com o embalo de coisa nenhuma e um estimulozito de vez em quando que dê pena ou dê riso, raiva ou tesão consoante os horários e o nível socio-económico que é preciso entreter. E é assim que nos vamos também informando, que vamos sabendo que se morre muito bem no médio oriente mas que aqui também não se está mal, que a vida é como a ficção e a ficção é como a vida e que tanto uma como a outra estão cada vez mais tristes e cheias de imaginação. Assim apodrecemos devagar e sem culpas a cantar em Karaoke uma vida que sabemos de cor.
Alguma vez te apercebeste que nada pode impedir a tua dedicação no emprego mas que qualquer merda serve para te distrair da tua vida?


Havíamos de ir andando não é? Eu pago a conta se tu prometeres esquecer tudo o que eu te disse. Faz de conta que eu estava bêbado, se não estava vou estar a seguir, não fui mais do que um prelúdio de mim mesmo. Sabes há quanto tempo eu não estou sóbrio? Verdadeiramente sóbrio? Sabes há quanto tempo eu não sei o que é ter uma ideia que não me nasça já intoxicada? Há muito, há muito tempo. Mesmo as minhas memórias começam a ficar sujas deste ar imundo que respiramos à falta de coisa melhor. Mas as coisas vão andando não é? E nós com elas, nós sempre com e por dentro delas.
Olha, dá lá cumprimentos meus quando me vires porque eu sei que dificilmente me encontro por aí.

10.3.09

Desajuste

Ela era uma mulher num corpo de mulher, mas de uma outra mulher, muito mais feia, com menos 10 centímetros de altura e manca de uma perna.

9.3.09

Acordar um Dia XIX

Acordar um dia com o mundo lá fora. Levantar-se lentamente e ficar à janela a decidir se pode entrar.




(Fragmento de uma ilustração do Marco Mendes)

8.3.09

Do Pobre Horácio

Havia mais coisas no céu e na terra e num certo canto escuro da garagem do que ele poderia imaginar. Era ainda criança quando se apercebeu que era pequeno e ignorante. Depois aconteceu-lhe aprender e compreender cada vez mais e melhor, amontoando noções e conceitos como se quisesse chegar algures. Mas ele não queria chegar a nenhum lado e tudo quanto aprendia era digerido como um prato de puré frio, alimento sem gosto. Tornou-se ilustre na arte pública de não ser nem mais nem menos do que dele era esperado, as palavras assisadas e os modos medidos em mediocridade irreprimível. Uma pessoa como as outras, mais ainda do que as outras, de exuberante virtude no ser assim sem ser mais nada.
Um dia ocorreu, como por vezes em alguns dias ocorre, que teve uma ideia original, um pensamento novo, coisa brilhante e ditosa por meio de tantas que o não eram. O homem encheu-se de surpresa e caiu num estado de entusiasmo febril. O mundo parecia rir e ele com o mundo, as cores multiplicavam-se e não havia sentidos que pudessem absorver todas as extravagâncias que ele ia descobrindo nos locais mais suspeitos. Nas flores tristes dos jardins públicos via ele cornucópias de perfumes refinados, os miúdos ranhosos que lhe pediam moedas eram anjinhos inocentes de cabelos doirados e a cidade cinzenta e suja onde vivia parecia-lhe a Paris dos postais ilustrados.
Deu assim em ser feliz. Atrás daquela ideia veio outra e outra ainda e sentia-se bem o pobre homem, como se fosse natural. Viveu o resto dos seus dias sem rugas na testa e dizendo o que pensava a quem o quisesse ouvir, sem o menor respeito pelo que houvera sido. As gentes olhavam e abanavam a cabeça, uma pessoa assim... tantos anos de estudo e trabalho para acabar naquele estado e nem se dar conta. Ficavam muito tristes as gentes, mas depois lá lhes passava e iam à vida delas.

5.3.09

Embaraço

O tempo estava particularmente quente e estável, o campeonato em pausa estiva e nós não tínhamos um único amigo em comum. A assistência técnica iria demorar pelo menos duas horas a chegar e o elevador estava imobilizado desde as nove da manhã.
São estas, meritíssimo juiz, as minhas atenuantes.

4.3.09

Pequenos Prazeres

Saiu um dia para comprar tabaco e logo aí a sua mulher ficou cismada, afinal de contas ele nunca tinha fumado. No entanto foi isso mesmo que ele fez. Comprou tabaco, apanhou um avião para a Tailândia e fez o check-in num hotel de luxo. Do bar para o quarto levou uma prostituta e após algumas peripécias fumou excitado o seu primeiro cigarro pós-coital.

3.3.09

A Última Conversa

- Tens a certeza que não te esqueces?
- Não, está descansado...
- Repete lá para não haver dúvidas
- Já o disse mil vezes... quando me fizeres sinal eu chego-me a ti e dou-te um beijo, então eles chegam e prendem-te.
- Exacto, depois alguém te vai dar os dinheiros, assim ninguém desconfia.
- Tens a certeza que queres mesmo fazer isto?
- Não tenho alternativa, mais tarde ou mais cedo tinha de acontecer algo assim...
- Que merda, mas não podes falar com o teu pai?
- Não, ele é demasiado orgulhoso.
- Mas de certeza que haveria outra maneira...
- Haver havia, mas ele acabaria por ficar mal visto.
- Olha, ao menos dá uma história bonita.

2.3.09

Acordar um Dia XVIII

Mesmo mesmo antes de acordar um dia, encontrar pelo sonho (meu, dele?) o colega da escola primária responsável por muitas dores nas canelas. Eu fingi que não o vi e ele fez o mesmo, não tínhamos nada a dizer nem mesmo em sonhos.
De qualquer maneira estava com bom aspecto o bandido.
 
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