Da janela para fora vê-se gente pela rua. Turistas
americanos com latas de cerveja na mão, adolescentes aos beijos, homens que
regressam sozinhos deitando olhares a mulheres cada vez mais feias. Há cadeiras
e até poltronas no meio do passeio, conversam, olham, vêem televisão em
aparelhos portáteis. Dois turcos acocorados puxam fumos de um narguilé e um
polícia gordo parado numa parede a olhar para o telemóvel.
Carros, um homem a gritar de bêbado,
música electrónica de um bar às cores, o rádio de um táxi, rebético mal tocado
numa taberna para turistas.
Da janela para dentro estou eu sozinho.
Alguns folhetos com roteiros turísticos espalhados na cómoda, um telemóvel
desligado, um bilhete de avião a marcar a página cinquenta e oito de “Os Mitos
Gregos” do Robert Graves: “O nascimento de Eros”. O aparelho de ar condicionado
faz tremer o ar com um ronco incerto e nenhuma brisa. Uma televisão acesa no
quarto ao lado, um casal a gemer no quarto ao lado.
Penso em sair e não saio. Nenhum sono,
nenhuma vontade de alguma coisa.
É tão difícil estar longe, não há mundo
que chegue para fugir. Tenho de dormir, tenho o tempo de algumas horas para
andar mais um bocadinho, sempre para a frente, sempre amanhã e depois.
Se sonhar com o Kavafis, atiro-me cedo
pela janela.
As senhoras da limpeza batem outra vez à
porta e eu não sei dizer palavrões em grego, Later, later, please.
Os olhos abertos e tanta luz, já me limparam as sombras, as cabronas.
Tomo um duche e visto as roupas mais
brancas, um disfarce de pedras antigas. Desço para tomar o pequeno-almoço, É
demasiado tarde, dizem-me; É demasiado tarde, digo-lhes.
Saio do hotel e procuro e encontro um
lugar para comer. Um velho sem inglês nenhum traz-me um bolo suado de calda de
açúcar e um café excessivamente grego. Ele ri-se para mim com todos os dentes
que não tem e eu rio-me também - Que há-de a gente fazer?
Estudo os horários dos barcos para as
ilhas mas a verdade é que não sei para onde quero ir. Leio os nomes em voz
baixa exagerando a pronúncia: Chios, Naxos, Ikaria, Patmos, Kos, Samos.
Apetece-me ir a todas, especialmente às que têm “k” ou “x” no nome. Puxo do
caderno e procuro as notas que tinha preparado.
Odisseia, Ilhas Jónicas: Corfu, Ítaca,
Levkas, etc.
“Eu,
João, que também sou vosso irmão, e companheiro na aflição, e no reino, e
paciência de Jesus Cristo, estava na ilha chamada Patmos, por causa da palavra
de Deus, e pelo testemunho de Jesus Cristo.” (Apocalipse1:9)
Córtazar: Xiros, a “Ilha ao meio-dia”.
“Zorba o grego”, Kazantzakis: Creta
“Mediterraneo”, Gabriele Salvatores:
Kastelorizo (430 habitantes)
A literatura já me estragou viagens que
cheguem. Há cidades que rebentaram de tanto serem lidas: Praga, Dublin, Veneza,
Barcelona. Não se pode confiar nos escritores para viajar, é preferível seguir
os filmes, são enganos que os olhos aceitam. Em Kastelorizo havia cabras,
burros, galinhas, pastores e mulheres de cabelos muito negros.
Pergunto por gestos onde posso comprar o
bilhete, Ticket, aponto para o mapa e desenho com o braço um barco
a baloiçar nas ondas. O velho ri-se e imita também um barco. Pireus, Pireus!
Da janela do táxi é tudo mais aceitável,
as senhoras que se benzem antes de atravessar a rua, os milhares de gatos que
dormem a desinventar o dia, homens que dão voltas aos kombolói nas
mãos sempre tão nervosas. O taxista pergunta-me para onde quero ir e ri-se com
a resposta. “Too little, only goats and time, is too little.” Peço-lhe que
espere à porta da agência. Lá dentro os turistas dividem-se pelos guias que
trazem nas mãos: American Express, Lonely Planet, Guide du Routard, Touring
Club Italiano. Americanos e alemães reformados, jovens com rastas, grupos
franceses com mochilas e calçado de trekking, casais gay de todas as idades.
Quando chego ao guiché repito a minha
ideia. O homem olha-me devagar e faz algumas perguntas ao computador. Vira o
ecrã para que eu possa ler e aponta com o dedo, apenas um barco por semana, É
longe, diz, um barco por semana. Abro o caderno e digo-lhe outro nome,
Cárpatos, dê-me um bilhete para Cárpatos.
Tenho horas até à noite. O barco parte de
madrugada para Rhodes e depois um outro nocturno até ao meu destino. Agora vou
ver a Acrópole, um monte de mármore branco erguido por gente já muito ida. Há
um qualquer conforto nisso, em ver e tocar algo que já morreu mas no qual
podemos tropeçar.
Vou passear aos deuses.
Isto pensei eu depois de almoço, a morte
só depois de comer. Subi por Monasterakis e perdi-me algumas vezes atrás de
gatos e cantigas, sobrava-me o tempo e os passos. Um miúdo de cabelo rapado
quis vender-me postais e pedras do Partenon, perguntei-lhe para quê e encolheu
os ombros, “Há pessoas que gostam de lembrar”, cabrão do puto. Dei-lhe dois
euros e disse-lhe que esquecesse.
Sempre mais turistas, mais pedras, mais
postais e réplicas de plástico. Não fui capaz de imaginar deuses ou sábios, só
o sol muito branco nas pedras, só vento a passar pelo desabitado dos templos.
Foram todos e levaram o passado que tinham. Agora uma bandeira grega a drapear
para as fotografias, agora estátuas que perderam há muito a cor e mantêm poses
difíceis, como um avô que foi actor.
Sento-me no Propileus a querer ser
americano ou japonês. Não tenho máquina fotográfica e escrevo alguns versos
muito maus. O miúdo do cabelo rapado passa por mim e ri-se, é fácil lembrar o
que nunca se viveu.
Desço até à cidade e pelo caminho compro
uma garrafa de raki.
No hotel tentam cobrar-me uma taxa por ter
deixado a mochila, discuto com o recepcionista por alguns minutos e acabamos no
bar. Ofereço-lhe uma cigarrilha e bebemos um café. Ele pergunta-me porque viajo
sozinho, eu digo-lhe que troco uma história triste por outra mais alegre.
Chama-se Yannis, mostra-me uma foto que guarda na carteira e dá-me uma palmada
no ombro. As mulheres empurram-nos com os pés, diz o grego, Mas podemos sempre
ir para a frente ou para trás. Não há nenhum homem no mundo que não tenha uma
teoria sobre as mulheres - Que há-de a gente fazer?
Volto ao Pireus e janto e olho para os
barcos até ser noite. Tenho quatro horas pela frente e nenhum sítio para
esperar. Vou andando, fumo e bebo pequenos goles de raki que
me vão queimando cada vez menos.
Porque viajo sozinho?
A noite é quente e desabrigo-me no chão
encostado a um pequeno muro. Acordo passadas algumas horas, a tempo de correr
para o cais com uma dor de álcool na cabeça. Levantam a rampa atrás de mim e
três apitos antes de zarparmos. Subo para o convés e fico a turvar as luzes de
Atenas até não haver lugar nenhum.
Rodes deve ser uma ilha bonita por baixo
de tantos turistas. Vou caminhando por ela com a esperança de que os pés
reconheçam o que os olhos não conseguem. Mais música despropositada, mais
vendedores e esplanadas, milhares de cruzados nórdicos que tiram fotos uns aos
outros e se contentam com um Graal de cerveja e um pires de azeitonas.
Fico rabugento e sem saber para onde ir,
Porra para as ilhas, e sento-me no cais onde algum dia assentou o colosso. Leio
no guia que as autoridades locais consideram a reconstrução da estátua, “com o
objectivo de incrementar o turismo”. Não imagino o incremento, a menos que
obriguem os visitantes a andar às cavalitas uns dos outros.
Leio e espero por um barco que me patrocine
a fuga.
Passo a noite no convés enfiado num
saco-cama. O vento vai aumentando e pelas três da manhã desisto do sono e
dedico-me a enlouquecer. Um marinheiro fuma abrigado e observa-me com
admiração. O saco-cama sacode-se como a vela de um navio e eu tento acender um
cigarro também, para me convencer de que é tudo normal. O vento rouba-me o
cigarro da boca e o marinheiro volta para dentro a rir às gargalhadas. Não sei
para onde fica o Norte e, por precaução, insulto os ventos todos: Bóreas,
Zéfiro, Euro e Noto.
Ao primeiro sol vê-se a costa de Cárpatos,
uma baía de casas brancas rodeada por montes de pinheiros mansos e oliveiras
tombadas para o mar.
Os passageiros vão-se juntando para sair,
há mais lenços negros amarrados nas cabeças do que calções e sapatilhas de
marca. Finalmente vou poder esquecer que sou apenas um turista como outros,
talvez consiga até escapar de ser apenas o que sou.
Assim que piso o cais vem um senhor
grisalho ter comigo. Italian, English? Would you like a nice room? Lembro-me
das mulheres da Nazaré e da Figueira, rooms, zimmers, chambres…
Caminhamos lado a lado em silêncio. Subimos por ruas estreitas e chegamos a uma
casa pequena com um terraço coberto por uma latada e virado para o mar.
Ele prepara o café e conta-me a vida em frases
curtas. Nasceu ali e esteve vinte anos emigrado na América, como quase todos os
homens da ilha. Trabalhava na construção civil e aos fins-de-semana tocava lira
em casamentos de compatriotas mais abastados. “Fazia mais dinheiro a tocar do
que a assentar tijolos, sábado é dia de festa, se quiseres vens comigo e
ouves-me tocar.”
“Vieste sozinho” e poisa duas chávenas
brancas com um buraco muito negro a deitar fumo. Não tinha dinheiro para chegar
à América, rio-me, Só pude fugir até aqui. “São vinte euros por noite, pagas
quando quiseres.” Entrega-me as chaves e levanta-se depois de me apertar a mão.
“Não te cases com uma ilha, são sempre elas a ficar viúvas.”
Fico ali olhando o mar a ser azul, o café
até à borra espessa, um cheiro seco a sálvia e tomilho, o silêncio de sinos de
vez em quando, pés calçados de chinelos a raspar as pedras do caminho,
Kalimera, Kalimera.
Nos dias que se seguem vou aprendendo a
ilha. As senhoras vestidas com trajes regionais que se levantam cedo para cozer
o pão no forno comunitário, as praias de areia onde chego à boleia de
pescadores de esponjas, o café-restaurante Gabriela, gerido por uma italiana
que passa os dias a ouvir fado enquanto prepara o pesto.
As raparigas da ilha andam guardadas de
olhares, e é melhor assim. Há um parque de campismo escondido num vale, ali
servem carne grelhada com muitas ervas e é preciso comer com atenção para que
os gatos não a roubem do prato.
A população aumenta com os emigrantes que
voltam para a festa. O mistério do grego vai-se misturando com palavras
inglesas de sotaque nasalado. Viajo pela ilha de autocarro e vou ter a uma
aldeia onde um velho sisudo toca uma tsampouna na esperança de
que eu a compre. Assisto a uma cerimónia religiosa que não consigo entender,
são meninas de saia rodada e toucas com rendas e um padre ortodoxo a dizer
palavras e gestos.
Chega o último dia e, depois de jantar, o
meu senhorio convida-me para o acompanhar até à taberna. “Chamo-me Georgios,
nunca tinha conhecido um português.” À volta de uma mesa juntam-se homens e
rapazes com instrumentos nas mãos, pedem bebidas e brindamos à ilha, à Grécia e
a coisas que só eles sabem. Tocam e cantam até ser já muito noite. Antes do
fecho alguém me puxa pela mão e fazemos uma roda para dançar.
“Vai-te agora embora e deixa cá a mulher
que te trouxe”, diz-me Georgios, “quando quiseres voltar, basta que cantes ou
dances à nossa moda, dança até poderes esquecer, até ser já noite.”
De madrugada deixei Cárpatos e não olhei
para trás. A meu lado uma menina italiana desenhava peixes e ovelhas e barcos.
Perguntei-lhe o que mais gostara da ilha e ela disse-me que tinham sido os
bigodes dos gatos e uma velha muito pequenina. Perguntei-lhe como se chamava e
ela disse-me que era Sara, e às vezes Giulia, ou Cristina, ou Silvia, ou
Martina ou Anna.
Não olhei para trás e tentei adormecer.
Não há caminhos para fora de uma ilha, só voltas ao mesmo, ideias circulares
rodeadas de azul. Todos os homens deveriam ter uma no meio do mar, onde
deixassem os amores que sobram e dias que já não podem ser vividos.
Afinal, que há-de a gente fazer?
Rebético: Género musical grego que teve
origem no séc. XIX nas tabernas do Pireus.
Kombolói: Brinquedo popular na Grécia,
semelhante a um rosário mas sem fins religiosos.
Raki: Bebida de elevado teor alcoólico e
sabor anisado.
Kalimera: Bom-dia, em grego.
Tsampouna: Instrumento musical semelhante
à gaita-de-foles.
(Texto publicado na Revista do jornal
Expresso a 19 de Janeiro)