A Memória
A faca de mato trazida da Guiné, fotografias e
diapositivos de paisagens cor de terra, mulheres negras de peitos caídos,
feiticeiros a meio de um ritual. Homens em camuflado com o cigarro ao canto da
boca, mas não são homens, são rapazes, um deles tem o meu sorriso e a minha maçã-de-adão.
Aerogramas guardados no fundo de um armário, garrafas de whisky com os rótulos
amarelecidos (Grand Old Parr, export), cassetes ouvidas muitas vezes
no gravador que usava para o ZX Spectrum: “De toda a parte chegam os
vampiros…”, “Ei-los que partem, novos e velhos, buscando a sorte, noutras
paragens…”. Um avô que contava histórias dos informadores da PIDE que lhe
frequentavam a taberna, do leite que vendia misturado com água, da fome, das
sardinhas secas, da miséria que era aquilo. Um outro avô emigrado que trazia
chocolates recheados de framboesa e palavras francesas pelo meio das outras. O
“respeitinho”, o “não parece bem”, “os pretos”, os “fachos”, os “vermelhos”, os
“retornados”. Um país a preto e branco que de repente cantava eurovisões de
lantejoulas e camisa amarela. Um país menino que quis ser grande e calçar
sapatos europeus. Um país que tropeça, e se levanta, e que tropeça.
As Obras
Tenho alguma dificuldade em escolher uma obra que
represente o 25 de Abril, apesar do esforço louvável da Maria de Medeiros com o
“Capitães de Abril”, demasiado tardio para que me ficasse gravado. Talvez o
“Torre Bela”, com o espanto e os excessos do PREC, com todo o entusiasmo e a
desilusão. Guardo as imagens do “antes” nas comédias portuguesas com o Vasco
Santana, o Ribeirinho e o António Silva, tão brilhantes que resistiram à
propaganda e conseguem ser ao mesmo tempo ingénuas e engenhosas. O “Povo que
Canta” do Michel Giacometti, um Portugal tão próximo e tão distante, a
carpideira que arrepia porque chora muito mais do que uma morte, um país tosco
e subnutrido que canta sabe-se lá porquê. O Zeca Afonso, decididamente o Zeca
Afonso, a “Grândola” que não precisava de mais do que os passos cadenciados na
gravilha. Quanto a livros, fico-me pela tetralogia do Almeida Faria, que
descreve os tempos todos por dentro e por fora e onde, no “Lusitânia”, numa
carta datada de 25 de Abril, se pode ler: “Não aparece uma revolução assim do
pé para a mão, se calhar nunca mais terei outra ocasião de ver um regime
esticar o pernil, se é que não se trata de um engano…”. E a dúvida enorme
cresceu connosco: Se é que não se trata de um engano.
(Texto publicado no Jornal de Letras de 16 de Abril de 2014)