Um pai atravessa o oceano e morre longe da gente. Um pai a menos.
“Arredem-me o mar que quero voltar para casa”. Foram as palavras que lhe ouviram, depois morreu.
Nunca chegámos a saber o que o fez partir. Uma carta deixada na mesinha de cabeceira, uma mãe em lágrimas e nós meninos pendurados da saia em perguntas de jantar.
Tínhamos poucos anos e aprendemos a calar. Minha mãe fez-se homem e trabalhou mais e deu-nos de comer e nunca mais cantou.
Não chegaram outras cartas, só aquela tão tardia. O pai que eu não tinha estava morto num lugar.
Escolhi um verão e fui atrás dele. Disseram-me onde jazia, terra chã de cruz em cima, aquilo um pai.
Era uma pequena cidade costeira, a casa abandonada junto à praia, miserável, sem tratos de mulher. Garrafas vazias, roupas esburacadas, um colchão imundo e os bichos a tomar conta.
Abri as gavetas e espreitei o armário, alguns documentos, cartas do banco, uma fotografia de família (de quando ainda sabíamos sorrir) e um maço de bilhetes. A letra desenhada em muitos redondos, excessiva, corações infantis a servir de assinatura. Encontros marcados, outros adiados, “hoje, no lugar que é nosso”, “beijinhos para o meu benzinho”, enjoos desses, coisas de menina ou puta de qualquer idade.
Saí dali e andei às voltas, imaginando-me trinta anos mais velho, tolo de palmeiras e de uma mulher vulgar. Que pai parvo deixaria a minha mãe por uma galdéria de corações?
Dirigi-me ao centro da cidade, bebi algumas cervejas e perguntei. O falecido português, que vida a dele? Foram-me dizendo pouco, que andava por ali, à pesca e aos copos, um resto de homem que nem se entendia.
Passei pelo hotel a buscar lençóis e fui para a praia deitar-me na cama do velho, alguma coisa haveria de entender. O sono veio embrulhado de ondas, um vaivém de ideias e corpo, a cama feita barco, ou náufrago, ou homem bêbedo. De manhã cedo a luz pelo telhado falido e o calor a empurrar-me para fora.
Molhei os pés e lavei a cara de sal, quieto num espanto de dia, à beira de qualquer coisa que me escapava. Pensei em peixes arrimados ao cimo de ondas, olhando a terra e pensando na vida.
Aproximou-se um homem sujo a rir com poucos dentes. “Menino, você é a cara do português!” E ria, e veio para mim.
Perguntei-lhe se o conhecia, se me podia ajudar a compreender, a mulher, quem era essa mulher?
E o homem riu muito mais, e deu passos de dança até cair na areia e eu sentar-me a seu lado.
“Seu pai era homem sem mulher, rapaz, era doido sozinho mesmo. Bilhete? Que bilhete? Isso era coisa da mão dele. Todo o dia o português vinha para a praia, assim que nem você, e se adentrava no mar como fosse coisa feminina. Depois, quando a água chegava na boca dele, ele fechava os olhos e beijava o mar, doido daquilo, parecia até sexual!”.
Fiz-lhe mais algumas perguntas, mas o homem não disse mais nada. Imitava os beijos do meu pai e ria e cantava até se levantar e desaparecer longe na areia.
Demorei-me ali a imaginar a loucura que haveria de herdar. Uma doença de águas e um amor tão desproporcionado. O meu pai era louco, mas talvez não fosse parvo. O mar tão perto, o vento quente, o contrário de nós. Não era coisa de ser normal, mas podia um homem perder-se daquilo.
Levei o resto das coisas para a casa da praia e fiquei à procura de uma história para contar. Algumas semanas, alguns meses, até me esquecer de procurar.
Afinal aquilo não era coisa de contar.
(Texto publicado na revista "Rua Larga", da Universidade de Coimbra)