Memórias de um Átomo
Dirão alguns que
não és ser, que um átomo não pensa, não vive e é coisa que não lembra. Que
sempre foste e sempre serás uma parte que mexe ao ser mexida, sem alma ou
intenção.
E, no entanto,
esses que falam são eles também grãos de coisa tanta e maior. E o sistema
solar, e a galáxia, e o cosmos, e Deus, que não existindo sempre teve imensas
opiniões. Que dirão de nós tantos infinitos?
Vivemos
importados com as nossas infâncias e mortes e somos afinal tão voantes, um
segundo de estrelas, uma mancha na superfície de um planeta, que ora está e ora
se some. E vamos compondo os nossos livros, e relatando as nossas memórias com
a minúcia dos tontos – foi no dia vinte e quatro de Fevereiro de 1866, jamais o
poderei esquecer. Mas esquecem todos os outros, e os próprios leitores chegam
ao fim da página a bocejar-nos os dias inolvidáveis, espreitando o jantar se já
está pronto, olhando para um relógio que mede o que já não nos pertence.
E tu estavas e
estás e vais estar ainda muito mais. Tu viste reis e imperadores e os seus avós
bárbaros, assististe à nossa queda das árvores, ao mar que nos pariu, à sorte
que nos deu nome. E continuas aqui, parte muda do meu aparo, resignado com só
ser sem nada perguntar. E se a indiferença ou a sageza te libertam das
vaidades, cá estou eu, João da Ega, homem de todos os costados, petulante, vão
e airado, pronto a trair-te a anonimidade eterna por uma glória que ninguém
há-de recordar.
(Texto publicado no Jornal de Letras de 29 de Julho, a proposta era a de imaginar os primeiros parágrafos do "Memórias de um Átomo", livro que o João da Ega dos "Maias" nunca chegou a escrever)