18.3.09

Manhã de Verão

De todos os mistérios certos e atempados não há nenhum mais habilidoso no agodelhar a gente do que o primeiro sol de Primavera. Esse sol malfazejo que chega assim um dia e se põe a dar voltas e a dançar como se não fosse ainda Inverno nas cabeças agasalhadas. Passa uns meses na América do Sul, deita-se pingado de rum cansado de dar à perna e um dia acorda com desejos de norte. Ele que venha e nós que o aturemos...

O Carlos acordou e abriu a janela desconfiado, cheirava-lhe a Verão. Mal deu a volta ao trinco foi empurrado com violência e ficou no chão a apanhar com a enxurrada de luz que esperava a madrugada para entrar. Ah luz de um raio, imprecou em pleonasmo o pobre Carlos, ai ele é sol e Verão e coiso? Levantou-se e tomou um banho a correr e a cantar, depois vestiu uma camisa às cores e saiu de casa aos saltinhos com o assobio em tom maior.

Quando chega o primeiro sol o Carlos fica cheio de tesão, apetece-lhe copular com tudo, árvores, montanhas, mar, sereias e crustáceos, tresvaria. Os amigos conheciam-lhe os hábitos e por esses dias nem se chegavam perto, evitavam-no como à peste. O Carlos começou a ronda dos dias felizes, passeou o sorriso guloso pelas esplanadas e pelos jardins públicos, sempre à procura de vítimas. Mas fosse pelo matutino da hora ou pela precocidade do estio, ninguém parecia ser sensível ao seu entusiasmo, e ele que rebentava de entusiasmo... Lembrou-se então de um café manhoso onde por vezes apagava as bebedeiras com galões e torradas. Era um sítio miserável mas abria cedo e era frequentado por outros vestígios nocturnos, em particular pela Teresa marreca.

A Teresa era uma mulher dos homens, passava a noite nas avenidas com a desculpa de pagar um curso onde nunca esteve inscrita e de alimentar um filho que um dia haveria de ter. O Carlos entrou e viu a Teresa pendurada no balcão, sentou-se a seu lado e perguntou se podia dar uma trinca na bola de Berlim. “Ó filho, a esta hora se quiseres dar trincas só se for num papo-seco” fazia-se difícil a donzela... mas ele tinha era fome, bola de Berlim, papo-seco ou côdea dura, o importante era o sol e a tesão, o resto era regateio.
Ela achava-lhe piada e sabia-o inofensivo, o sono baixou-lhe as defesas e lá saíram os dois de braço dado para se enfiarem na carripana do exaltado. A Teresa marreca fechou os olhos e quando os voltou a abrir tinha o mar à sua frente. No rádio do carro passava uma bossa-nova aos tropeções, ele despia-lhe o vestido e cantava os fins das frases com um entusiasmo de garoto. “Tens dinheiro contigo? Olha que eu não aceito cartões” ele ria e dizia que sim, baixaram o banco e lá se encontraram as expectativas e a benevolência.

Foi assim que o Carlos deu início ao Verão e a Teresa terminou o Inverno. As gaivotas voavam à volta de olhos quase fechados e davam graças a Deus por tudo se ter resolvido.

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