Foi por acaso que ela voltou ao mesmo aeroporto sete anos depois. Mais uma vez havia um atraso e um companheiro de infortúnio, também ele com o voo atrasado e uma vida que se havia tornado monótona. Por esta altura ela, que do acaso já conhecia as manhas, poupou-se à espera e logo ali ficou combinado um encontro para a semana seguinte.
27.2.09
Acasos
Foi por acaso que ela voltou ao mesmo aeroporto sete anos depois. Mais uma vez havia um atraso e um companheiro de infortúnio, também ele com o voo atrasado e uma vida que se havia tornado monótona. Por esta altura ela, que do acaso já conhecia as manhas, poupou-se à espera e logo ali ficou combinado um encontro para a semana seguinte.
25.2.09
Dois homens e o vento
Faz muito noite. Também faz frio, chuva e vento, que vento. Dois homens trabalham na linha do comboio. Tanto um como o outro.
Primeiro Homem: Está frio!
Segundo Homem: Está frio e vento. Venta muito.
Primeiro Homem: Toda a gente sentada ao quente e nós aqui... E eu que nem sequer ando de comboio. Estas linhas não me levam para lado nenhum.
Segundo Homem: As linhas não levam ninguém.
Primeiro Homem: Se os comboios pudessem andar por todo o lado não eram precisas linhas. Havia mais liberdade e menos noites ao frio.
Segundo Homem: Mas podia-se ir parar a qualquer lado, um engano do condutor e ia-se parar a qualquer lado.
Primeiro Homem: Mas assim só se pode ir para a frente, para onde está escrito.
Segundo Homem: Se calhar chega bem, não há muita gente a querer ir para outros sítios. Vai-se para lá e pronto... para onde está escrito.
Primeiro Homem: Mas são precisas as linhas, e com este frio...
Segundo Homem: Frio e vento, venta muito.
24.2.09
Acordar Um Dia XVII
22.2.09
Volumetria
Os dois corpos encolhiam-se, torciam-se e incomodavam-se por entre caixotes cobertos de pó e cadeiras sem uma perna. Às vezes esticavam um braço com esforço e afloravam com os seus os dedos do outro, outras vezes não. Aquilo só parecia mal a quem olhava de fora. Ninguém olhava de fora. Não havia de fora. O espaço que tinham era todo dentro e enrolava-se por entre as pernas todas. Ela cantava baixinho e ele talvez cantasse também, músicas simples e só o refrão. Afinal não havia motivos para grandes exaltações.
20.2.09
De Inisi Afa
A recente publicação em língua portuguesa das mais representativas obras de Inisi Afa, importante escritor Melanésio, vem finalmente permitir ao público lusófono o conhecimento de um curioso caso de singularidade literária. Inisi, filho dos amores furtivos de um missionário escocês e de uma nativa da ilha de Makira, apreendeu o conceito de alfabeto através de uma bíblia deixada à pressa na cabana de sua mãe. Desde tenra idade Inisi dedicou-se a desenvolver um sistema de símbolos que lhe permitisse registar por escrito o seu dialecto, até esse momento apenas de expressão oral. Uma vez completada tal tarefa, Inisi começou a criar algumas das mais originais obras da literatura mundial.
O seu primeiro livro, escrito nas entrelinhas da referida bíblia, tem por título “Nos dias pequenos às vezes temos fome” e poder-se-ia qualificar como um relato naturalista “avant la lettre” em que este descreve as contingências económicas que provocavam violentos conflitos entre as diversas tribos do território. Numa passagem inesquecível Inisi descreve com pormenor o processo pelo qual as cabeças dos inimigos capturados eram reduzidas e penduradas em pontos estratégicos da ilha. Já neste primeiro manuscrito é notória a sua capacidade para expressar os sentimentos de descontentamento e de revolta existencial tão característicos da sociedade Melanésia do sec. XVIII.
A segunda obra apresentada nesta edição tem por título “Fui pescar um peixe grande grande” e é um notável relato em fluxo de consciência de uma jornada de pesca solitária. Inisi convida-nos a partilhar da sua percepção e faz-nos acompanhar as preocupações, os desejos e as fantasias de um pescador simbólico em busca de um “peixe grande grande”.
O último volume agora traduzido é por muitos considerado como a obra-prima deste autor, o magistral “O regresso dos cabelos vermelhos” é uma distopia poderosa em que o autor imagina um mundo futuro dominado por personagens omnipotentes e cruéis de cabelos ruivos. Nesta utopia negra, Inisi descreve uma sociedade transformada e radicalmente oposta aos valores e tradições que conhece. O autor imagina uma realidade onde o tempo é controlado por mecanismos e não pelo sol, os homens são obrigados a caçar para outros homens, os corpos são presos em tecidos de cores escuras e todos os deuses morrem ficando apenas um, desconhecido pelas gentes da ilha. É uma escrita angustiada e assaltada por assombros filosóficos que revela um autor maduro preocupado com os destinos da sua cultura e da sua colecção de cabeças encolhidas (maravilhosa metáfora).
Esta tripla edição constitui um documento fundamental que vem consubstanciar a teoria do famoso crítico literário Kapi Popol, segundo a qual a literatura europeia dos finais do século XIX e inícios do século XX é originalmente um produto importado da Melanésia conjuntamente com a copra, o cacau e a kava.
19.2.09
Porque me olhas assim?
É verdade que eu sou feio e careca, que tenho a barriga flácida e os dentes maltratados. Bem sei que sou desajeitado, que tenho tendência para a misantropia e não arranjo um emprego certo. Mas porra!
18.2.09
Acordar Um Dia XVI
17.2.09
Acordar Um Dia XV
16.2.09
Intercessão
“Eu não sei nada de telhas acima, mas se o amigo se lembrar diga um Pai Nosso por mim que eu andei muito de mal com ele”. Disse-me estas antes de o levarem dali para fora aos empurrões. Não exactamente aos empurrões, mas com os movimentos precisos e indiferentes de profissionais de mudanças. Agora estás aqui a pedir Pais Nossos e agora vais para onde te queremos nós, alguém por nós ou o outro das rezas. E vais de rodinhas. De quando aqui entras passas a ser deitado, se sais de pé ou não, é coisa que não sabemos, fala lá com o outro se ele ainda lá estiver.
Eu tentava lembrar-me das palavras mas não conseguia passar do “assim na terra como no céu”, por isso disse-o muitas vezes como se fosse um mantra. “Assim na terra como no céu, assim na terra como no céu”. Eu também não sabia nada de telhas acima e suspeitava muito das palavras. Que doesto lhe haveria feito o pobre homem? Que resposta lhe haveria dado o outro? Eles que se entendessem que eu nem o Pai Nosso sei de cor. Pedir-me assim uma cunha de tanta responsabilidade era coisa irreflectida, “assim na terra...”. Devia-lhe ter pedido o mesmo, “diga-lhe um Pai Nosso por mim que eu nem sequer o conheço”, quem lá chegar primeiro que amanse a fera e trate do arranjinho, “há-de aparecer aí um amigo...”, era o que eu devia ter feito.
Afinal de contas, mais cedo ou mais tarde... e de rodinhas.
14.2.09
Comportamentos
13.2.09
Trajecto
O Pedro e a Joana sentaram-se à nossa frente e começaram a falar do apartamento para onde se tinham mudado há escassas semanas. Tinha problemas de canalizações, uma divisão pequena para a qual ainda não tinham função e uma varanda onde batia o sol antes de se pôr. Eram um casal simpático e intercalavam o discurso com pequenos apartes não orais de intimidade provocatória. Foram chegando mais pessoas, o senhor António de Almeida, recém divorciado e à espera de uma promoção; a Sara, que frequentava o primeiro ano de uma licenciatura de inquestionável modernidade; a família Pinto com o periquito Daniel e finalmente a dona Ana que entrou perseguindo o andarilho numa perfeita demonstração do paradoxo de Zenão que a todos agradou. Contaram-se algumas piadas e fizeram-se confissões. Os mais afoitos aproveitaram mesmo para interpretarem uma ou outra canção popular.
Era este um grupo particularmente simpático e foi com mágoa que nos vi chegar à praça do mercado, precisamente no momento de maior entrega, de uma quase euforia colectiva. Assinalei a minha intenção de sair na paragem seguinte e comecei as despedidas. Entre beijos e apertos de mão, tive de me conter para não ceder a algum sentimento mais líquido. Cheguei-me à porta do autocarro, deixei-lhes um sorriso e os votos de reencontro e desci as escadas. Fiquei a acenar-lhes da rua enquanto partiam em direcção a um serão já fora do meu alcance.
Subi as escadas do prédio e inspirei fundo antes de dar a volta à chave. Entrei rendido no meu pedaço de mundo, alugado e partilhado. Ela saudou-me da cozinha com uma daquelas frases que tão bem servem. Respondi no mesmo tom e trocámos beijos tangentes. Pouco depois estamos sentados um em frente ao outro com os pescoços torcidos na direcção do televisor. Temos o garfo suspenso no ar e vemos mortos de guerras monótonas darem lugar às gaffes de políticos, eles próprios gaffes da natureza. Ruminamos de boca e olhos abertos aquela mistura de puré com sangue de gente pobre, de ervilhas congeladas e palavras banais, almôndegas tristes de artistas medíocres e gatinhos prodígio. Depois tomamos café. Vemos um filme e um debate e vamos para a cama como quem desiste. Apagamos a luz, contamos uma mentira para não dizermos outra, e acabamos por fazer o óbvio imaginando sabe-se lá o quê.
Eu às vezes só gostava que nos voltássemos a encontrar no 14 daquela tarde de Janeiro. Que tal como dessa vez subíssemos juntos e às voltas as escadas do prédio. Que abríssemos todas as portas até chegar ao quarto e aí fizéssemos um amor que já não sabemos onde deixámos.
11.2.09
Hidrostática
Acordar Um Dia XIV
10.2.09
Era Assim
Passávamos as noites (era quase sempre noite) a fumar e a beber. Falavam-se de coisas vagas e por vezes havia alguma rapariga bonita. Nós alinhávamo-nos de copo na mão e fazíamos uma corrida em câmara lenta para ver quem chegava primeiro. Nem sempre havia raparigas bonitas, mas nós fumávamos e bebíamos não obstante.
Eram dias em que o tempo passava muito devagar. Sobravam-nos minutos e horas inteiras que não sabíamos gastar. Durava muito o tempo por essa altura. Nós fumávamos e bebíamos e uma conversa durava toda a vida. Assim era no atelier da Mariana.
(Ilustração de Marco Mendes)
9.2.09
Feitios
Um dia nasceu o Serginho, e fê-lo muito como costumam fazer outros nas mesmas circunstâncias, ou seja, sem querer. Do calor materno para o branco hospitalar, dos cantos redondos de um corpo que se conhece para um mundo idiota cheio de olhos esbugalhados a adivinhar parecenças, tudo eram renitências e hesitações. Mas nasceu, ou foi nascido, e cedo foi levado para o lar provecto cheio de mognos e livros encadernados em pele.
Que bonito era o Serginho. Uma bela criança que deu em crescer enquanto os outros esfregavam os olhos. E comia tudo o Serginho, e dormia sonos de menino Jesus o Serginho, era um petiz abençoado.
Segunda a tia Luísa, uma solteirona muito direita e de nariz em abre-latas, era este um rebento exemplar. Senão vejamos (e puxava pelo caderninho), aprendeu a dizer adeus aos cinco meses, aos seis já se aguentava de pé e aos nove começou a caminhar, um verdadeiro prodígio de caracóis. Havia apenas uma pequena lacuna no percurso do rebento, é que tardava em falar. Ia já em ano meio e ainda ninguém o tinha ouvido articular o mínimo som, nem “mamã”, ou “papá” ou “pepê” ou mesmo “pá” ou “mã” ou qualquer outro ditongo que os familiares pudessem interpretar. Nada, o catraio fazia voto de silêncio.
Naturalmente o Serginho foi visto pelos melhores especialistas disponíveis no burgo e estes, que eram unânimes em poucas coisas, numa concordavam, o petiz não era mudo, apenas não sabia ou... não queria falar. Feito o diagnóstico, começou toda a família a envidar esforços para convencer o pirralho. Doces, chocolates, cócegas e beijinhos, chantagens (emocionais e das outras), sevícias, palmadas e orelhas torcidas. Aquilo foi o diabo. Mas que viesse a inquisição, o doce arcanjo Gabriel, ou um palhaço coberto de algodão doce, era igual, o raça do moço não falava nem que se virasse o mundo. Impassível e silencioso como uma estátua particularmente impassível e silenciosa. Assim era o Serginho.
Foram passando os anos e foram-se conformando os parentes. O Serginho fazia tudo o que faziam os outros miúdos e às vezes até melhor, tinha as suas habilidades, mas coitadinho, não falava. Pelo menos não era aleijadinho, nem parco de entendimento, e antes assim que pior. Era essa a sua índole.
Até que um dia, estando toda a família a jantar, aconteceu um silêncio no final da sobremesa. Alguns olhavam o copo, outros lambiam a colher e outros nem menos isso. E então, com um ar muito solene levantou-se o Sérgio. Pôs-se muito direito no alto da adolescência espigadota e olhou lentamente em redor. O rapaz inspirou fundo e de seguida abriu a boca. Na sala o ar vibrava com tantas expectativas. Mas foram bem escusadas, o estafermo fechou a boca e de novo se sentou para esperar o café. Quem saberia das suas razões?
8.2.09
Do caderno de Cide Hamete Benengeli
6.2.09
Acordar Um Dia XIII
5.2.09
Descuido
Foi esse o seu ultimo momento de felicidade, de resto apenas possível graças ao tal descuido.
4.2.09
Acordar Um Dia XII
Acordar um dia a meio de uma enorme epifania onírica. Significados ocultos e subtis revelados com clareza cristalina. Ter preguiça de escrever. Voltar a adormecer. Acordar duas horas mais tarde a meio de um sonho palimpsesto feito de palhaços pernetas e mamas voadoras.