Nefelibata: que ou quem vive nas nuvens;
diz-se também do escritor que não obedece às regras literárias; alguém demasiado
idealista, que foge da realidade.
Do grego nephéle (nuvem) e bata (o que anda), o termo parece ter sido cunhado por Rabelais em
“Pantagruel” onde, no quarto livro, é descrita a batalha dos Nefelibatas com os
Arismaspos. No
final do século XIX, a mesma palavra foi utilizada em Portugal pelos escritores
naturalistas para apelidarem as gerações mais novas que por esse período
aderiam à corrente simbolista-decandentista que chegava de França.
Raul Brandão, um dos escritores que mais
viriam a influenciar a literatura portuguesa do século XX, assumiu a designação
e subverteu-a, formando com Júlio Brandão e Justino de Montalvão o grupo “Os
Nefelibatas” e publicando em 1982 um folheto com esse nome sob o pseudónimo
colectivo de Luís Borja. No folheto/manifesto, os autodenominados Nefelibatas
proclamam-se “Ateus do Preconceito e da Opinião Pública (…) Anarquistas das
Letras, Petroleiros do Ideal”.
Quando eu era criança diziam-me muitas
vezes, ao esbarrar num poste de iluminação ou quando tropeçava nos degraus de
uma escada: Vives nas nuvens, tens a cabeça na Lua. Não sei se eu era apenas
distraído, se estava a praticar para ser um “petroleiro do Ideal”, mas
entretanto cresci e, enquanto muitos dos meus amigos foram descendo à Terra
(alguns poisando, outros caindo), eu temo que ainda por lá ande, nas nuvens, na
Lua, um anarquista do passeio público.
Diziam-me isso e eu não entendia, porque
achava que todos queríamos por lá viver, longe da escola e da rotina, da vida
tão pequena e ordinária. Nas nuvens não haveria trabalhos de casa ou sapatos
enlameados, colegas maiores e mais fortes, gente doente, ou avós que morrem um
dia. Os galos na cabeça e os pés torcidos eram um pequeno preço a pagar, culpas
de um corpo que insistia em não voar.
O nosso mundo nunca foi um lugar
recomendável, e por isso fomos aprimorando a arte da fuga: pelas ideias, por
Deus, pelo amor que vamos conseguindo ou imaginando, pelo álcool, pelas drogas,
pela arte. Parece haver um consenso generalizado entre homens quanto à superioridade
da vida em relação à morte, e, contudo, são poucos os que não tentam escapar à
vida que têm.
Os artistas foram sempre os Houdinis da vida, capazes de desaparecer
mesmo de onde nunca estiveram. Qualquer paixão lhes serve de porta, e lá vai o
artista por um caminho que só ele conhece. De entre estes há alguns
particularmente perigosos, chamam-se malditos ou loucos, estão sempre
adiantados ou atrasados em relação ao tempo dos outros e alguns nem cumprem as
“regras literárias”. É gente que se permite rir por entre o caos ou chorar
enquanto outros dançam. Somem à vista de todos e deixam buracos invisíveis na
calçada, armadilhas terríveis disfarçadas de chão.
Mas onde deve viver um escritor?
Quando me converti em leitor, todos os meus
escritores viviam em mansardas em Paris. Eu não os deixava sair, porque só ali
me serviam. Não queria escritores do meu país nem da minha rua, ou que andassem
pelo bairro e comprassem pão e pagassem as contas. Queria os meus escritores
miseráveis, acordando ao Sol-posto, mordendo cebolas cruas, bebendo o vinho
mais ruim e tendo por amor os favores fortuitos de mulheres pouco
recomendáveis.
As mansardas eram para mim próximas das
estrelas. Aí viviam Balzac e Baudelaire, mas também Kafka, Dostoievski, Borges
e até o meu Fernando Pessoa de Lisboa, que afinal era de Paris. Para mim as
estrelas e as mansardas eram ao mesmo tempo castigo e prémio de poetas, um
lugar fora do mundo, sem as leis do mundo.
Aprendi mais tarde que também se podia
viver nos subúrbios de uma cidade americana ou num bairro sofisticado de
Tóquio. Que alguns escritores (e até bons escritores) casavam-se e tinham
filhos, e acordavam de manhã para cumprirem um horário, tinham as estantes
arrumadas por ordem alfabética e pagavam as contas com uma antecedência
suspeita. Devem ter as mansardas na cabeça, concluí.
Depois aprendi mais, e descobri que há
escritores à paisana, disfarçados de gente e camuflados de cinzento. Descobri
que há agentes secretos infiltrados na vida, prontos a recolher qualquer
conversa banal e a torcer-lhes os sentidos até serem outra coisa qualquer, nos
piores casos até poesia. São homens e mulheres de dedos hábeis, capazes de
eliminar mesmo as lógicas mais subtis, mesmo as regras mais antigas.
Que regras deve um escritor desrespeitar?
O que são as regras literárias e como
fugir-lhes? Uma frase sem verbos ou predicados, é da literatura? Uma oração sem
Deus nem prece, é literatura? Um crime sem vítimas nem culpados, uma história
sem sujeitos ou um sujeito sem história, são literatura? Quanta realidade deve
ter um livro? É necessária? Desejável? É possível fugir-lhe?
As regras nascem do acordo e do
compromisso, “é isto que nos convém”. Servem para que nos entendamos e evitemos
os conflitos desnecessários. Mas, ao contrário das leis civis, que têm
parlamentos eleitos para as propor e aprovar em dias certos, as regras
literárias só podem surgir da infracção. Através de obras isoladas ou de
manifestos colectivos, apenas a transgressão permite estabelecer uma nova forma
ou um novo cânone. São muitas as obras que romperam com o passado e abriram
novos caminhos, poucas as “obras-primas” que se conformaram com o que já
existia. “A Divina Comédia”, “Dom Quixote”, a obra de Shakespeare, “As Flores
do Mal”, o “Ulisses” de Joyce, o “Livro do Desassossego”, “A Metamorfose”,
obras que souberam desobedecer às regras literárias do modo mais escrupuloso.
Afinal, a realidade estava de fora das regras.
Onde está a realidade do escritor?
No meu romance “No Meu Peito Não Cabem
Pássaros” imaginei um Borges que olhava para as nuvens e nelas descobria os
tigres e os dragões que lhe habitavam os sonhos. As nuvens são próximas da
imaginação, matéria estranha entre o sólido, o líquido e o gasoso, ideias que
voam e vão tomando as formas que lhes soubermos encontrar.
A realidade é um lugar onde tudo é apenas o
que pode ser. A literatura e a ciência aumentam a realidade, transformam o
ridículo e o inverosímil em hipóteses, memórias e experiências. Mas essa
realidade deixa de interessar a quem a inventa, está feita, e parte-se para
outra, distante ainda, para lá do que se vê.
Escrever é ser Deus por cima e por baixo,
mexer no íntimo dos homens e escolher do minério o metal, o que deve brilhar ao
dia. Os homens são cheios de nuvens e não sabem. Por entre o almoço e o
trabalho, e não sabem, no trânsito e no escritório, na cama, e não sabem. Mas
há quem more do outro lado do sonho e saia à rua disfarçado num pijama, com os
sapatos trocados e os dentes a cair, voando e caindo com as mesmas asas. Há
quem respire por palavras e músicas secretas, quem se passeie no céu porque só
o azul lhe aguenta o peso.
Em todos os tempos há quem critique os
sonhadores, os intelectuais e os poetas. Que a vida anda por outros lugares,
que os tempos são difíceis e nada propensos a sonhar. Mas em todos os tempos há
momentos cruciais, em que o sonho derrota a vigília e nos apercebemos de que
tudo é como não sabíamos que fosse. Como no capítulo XVI de “Guerra e Paz”, em
que o príncipe Andrei Bolkonsky é derrubado pelo exército francês na batalha de
Austerlitz e, deitado no chão, pensa para si mesmo: “Que tranquilo e sereno
céu, tudo é vazio, tudo engano e decepção, excepto o céu infinito”.
Tudo é vaidade e correr atrás do vento, diz
o Eclesiastes, mas o céu é verdadeiro, o céu espelha os homens sem lhes
perguntar razões.
Hoje a Europa é uma má realidade. Os
noticiários, as palavras e as nossas cabeças foram sequestrados por economistas
e políticos, uma gente sinistra que traz a cabeça presa pela gravata e não
consegue olhar o céu. Os dias estão demasiado iguais, sempre piores e sempre
mais iguais. Andamos há muito tempo a cumprir as más regras, precisamos de
malditos que nos tirem daqui à força de poesia. Estamos atolados numa realidade
que já não serve.
Talvez seja chegado o momento de
fabricarmos asas que nos levem para junto das nuvens, de sermos um continente
de nefelibatas, partindo para o céu como a Península Ibérica partiu um dia para
o meio do Oceano na “Jangada de Pedra” de Saramago. Uma Europa lançada ao
vento, que voe para não cair, que se rapte a si mesma e fuja ao peso de ter
peso.
(Texto publicado na rubrica "Un Mot d'Ailleurs" do número 603 da revista Nouvelle Revue Française)
Sem duvidas que precisamos de um céu, como terra, nuvens como tecto e sol como candeeiro. A terra, no seu conceito básico de terra, já não serve à maioria. Um dia invento outras asas e sairei na procura da terra prometida.
ResponderEliminarUm abraço,
Carla Pais
Muito bom "viajar" nesta nuvem.
ResponderEliminarLídia
Gostei muito de ler este texto.
ResponderEliminarAinda falta, “No Meu Peito Não Cabem Pássaros”.
O mundo não vive sem sonhos, sem nuvens, nefelibatas. São estes que a tropeçar na vida, voam e fazem-na avançar. As sombras existem apenas para denunciar o brilho, o peso para aguçar as asas.
No Meu Peito Não Cabem Pássaros me escolheu desde a primeira vez que li seu título e o tomei como o lema de minha vida, um código secreto para aqueles que muitas vezes gostariam de transbordar em si e voar bem longe. Vejo que não me enganei, este texto prova que o livro é fruto de alguém que, assim como eu, tropeçou distraído na realidade e só era despertado com um "você parece que vive em outro mundo!". Quem dera eu. Aliás, quem dera nós. Obrigada por proporcionar um voo breve dos meus pássaros pelas páginas que escreveu! Continue criando nuvens cada vez mais altas, como todo bom escritor.
ResponderEliminarOlívia