Deixando Atenas por Ocidente e cavalgando por vinte séculos, chegamos a Europa, maravilha quieta dos homens cansados.
A cidade foi erigida em pedra, depois arrasada e
reconstruída em tijolo, depois novamente destruída e refeita em betão e vidro,
pensada para durar e espelhar quem a habita, até ao fim dos tempos ou a
extinção da espécie.
Europa é um lugar por exclusão de partes, nada de seu
que não tivesse importado ou imitado dos impérios circundantes, das culturas
que herdou ou que subjugou pela força e pelo cansaço.
A sua moeda é ambígua, tem uma face que representa o
império e outra dedicada às diversas províncias, como se de povos se pudesse
inventar um povo.
Os cidadãos desentendem-se em muitas línguas e
são-lhes dadas palavras vagas e fracas como uma desistência. Ninguém pensa com
as palavras de Europa, porque não servem para o íntimo, e os amantes não as
trocam, porque não servem para o amor, e os loucos não as gritam, porque são
palavras que não voam.
A cidade trabalha como um prisma do avesso, uma
mistura de muitas cores que resulta em cinzento. Os prédios, as vestes, as
músicas tocadas em algumas esquinas a certas horas, são pardas de cor e de
textura, como algo que permaneceu demasiado tempo no bolso de umas calças e já
não se distingue. Morre-se muito nesse cinza-Europa, e pode um homem
desaparecer apenas porque deixou de ser visto.
Ali, os verbos futuros duram o tempo de uma queda. O
passado engole a gente e os sonhos, o sol que nasce parece gasto de outras
cidades mais vivas, é um sol de ontem, que não deixa ver nada de novo.
Assim é Europa, mas não tem de ser assim.
Há homens secretos a rir pelos buracos da cidade. Há
rachas nos muros, nas paredes, no asfalto do império. Surgem poemas no tecido
coçado dos assentos dos autocarros. Versos brutos de coisas brutas e antigas,
de pão e vermelho vivo, de dor e ar e boca.
A seriedade, o peso, a história da cidade criaram uma
casta de homens que são sombras e anjos, filhos de putas e de deuses
distraídos.
Em algum momento hão-de juntar-se os doidos e votar
moções de nuvem, eleger pássaros, escolher as leis do acaso, formas governos de
um dia e presidentes de um salto.
Hão-de os bancos comprar cantos e assobios, as pastas
negras transportar berlindes e piões, as gravatas atadas em cordas de saltar e
os decretos transformados em aviões de papel.
E Europa há-de ser outra coisa, que rebentemos todos
se não for outra coisa.
Já nos cansa a nona de Beethoven. Não se canta uma
alegria afinada pela fome.
Enfiem as doze estrelas num sítio onde faça muito
escuro. Queremos mais cor, e menos bandeiras.
Queremos as coisas primeiras, comer com as mãos e
semear o que sobrar nos dedos.
E um dia, isto ainda há-de ser outra coisa. Que
rebentemos todos se não for outra coisa.
(Texto lido a 26 de Maio no LeV, em Matosinhos)
Belíssimo Nuno...Belissimo!
ResponderEliminar"Que rebentemos todos se não for outra coisa."
"Não se canta uma alegria afinada pela fome."
ResponderEliminarObrigada por partilhar este texto, conciso e incisivo.
Lídia
Adorei! Excelente! Queremos palhaços de verdade, rir com seriedade, uma Europa de outra coisa que não esta. Que rebentemos todos se assim não for!
ResponderEliminarFico sempre deslumbrada com os seus textos.Este é excepcional.Também acredito que tudo isto há-de ser diferente um dia.Mesmo que já não veja.
ResponderEliminarGostei muito do seu livro,que ainda não tinha lido quando esteve em Leiria na "minha" Arquivo.Gostei de o ouvir e das palavras que trocámos.
Continue,Nuno!Acredito na sua escrita.
Aprecio muito o seu blog. Todos os dias tenho visitado o mesmo e delicio-me com os seus posts. Espero que continue com o bom trabalho.
ResponderEliminarCumprimentos
Margarida Fonseca Dias
www.europeanemaildatabases.com