21.7.09

Bico, Penas, Pássaro

Um dia o rapaz passou por um pássaro morto
e  viu as penas e o bico do pássaro morto
Depois o rapaz leu e estudou mas
vinham-lhe muitas vezes à ideia as penas e o bico
Quando um dia se sentiu cheio de tudo o que 
ia guardando debaixo da pele o rapaz
escreveu um livro cheio de si e de poemas
e foi-se enterrar a sós num caixãozinho

17.7.09

Trainspotting

Era uma pessoa toda feita de conseguires, rumos e metas embrulhados em lógicas de maquinista louco. Eu queria um beijo, mas quê... Não constituí apeadeiro. Ela por foi, a inventar carris paralelos a nada que fosse meu. Mas em algum sítio ela terá parado. Nenhum comboio viaja vazio por muito tempo. Talvez a mim me faltasse o bilhete, ou eu fosse mercadoria de pouco.

Às vezes ela passa e apita, e eu que durmo na estação aceno com lenço branco e digo adeus aos passageiros que sorriem sem me querer algum mal.

7.7.09

Acordar um Dia XXIX

Acordar um dia com medo. Um medo irracional desses que podem ser provocados por insectos, casas vazias ou mulheres de um certo tipo.

4.7.09

Latência Sonialista ou O Anti-Manifesto de Fim de Festa ou Gere-se Outra Geração

Nós, e eu, e os outros, estamos mortos Senhores, mortos. Fomos paridos nos viveiros das vossas crenças Senhores. Fomos adubados com as vossas ideias iluminadas e nascemos já mortos, Senhores.

Mamámos do comunismo e do anarquismo e do futurismo e do fascismo e do capitalismo e do modernismo e do existencialismo e do pós-modernismo e da puta que vos pariu, Senhores.

Aprendemos a desejar, a ganhar, a comprar, a sofrer, a correr, a trabalhar. Mas não aprendemos mais nada, não sabemos mais nada, não temos memória de nada, Senhores.

Gostaríamos de ter opiniões e de ser inteligentes e pensar o mundo e dizer que não ou talvez, mas nós não sabemos nada e não sabemos saber nada. Somos coisas de querer, não somos de pensar, Senhores.

Compramos o belo feito porque nos disseram que é belo e porque devemos comprá-lo. Nós não fizemos o belo. Nós ainda não fizemos o belo, Senhores.

Não temos vontade porque já nascemos com desejos. Mas nós não desejamos o que desejamos, Senhores.

Nós estamos depois do fim e antes do começar de tudo o que é grande. Nunca nada nos é grande, Senhores.

Não sabemos fazer revoluções e não podemos fazer a guerra porque nós não temos sangue nem corpo. Não temos corpo, Senhores.

Estamos afogados em passados e afogados no futuro. Não soubemos inventar nenhum dos dois e assinámos de cruz um contrato a tempo indeterminado. O nosso único contrato a tempo indeterminado, Senhores.

Nós não sonhamos por nós. Os nossos sonhos são feitos em estúdio e os papéis são-nos dados já escritos. Escritos por vós, Senhores.

Estamos fartos de ser enxames de trabalho, enxames de prazer, enxames de consumo. Queremos o luxo de um nome próprio e uma vida por inventar. Queremos ser livres de uma liberdade que nos foi imposta. Mandar ao ar a ciência e a arte que não procurámos e que não sabemos para que serve. Queremos a tristeza em vez da depressão, a alegria em vez do delírio. Queremos vidas feitas de um tempo e de uma realidade à nossa medida. Queremos um corpo e uma cabeça e um sexo com defeitos e apetites. Queremos levantar o alcatrão e desenhar outros caminhos. Queremos correr estradas que nos levem a um destino todo por descobrir. É isto que queremos, Senhores.

3.7.09

Memória Reinventada

-Lembras-te quando éramos miúdos e ficávamos tardes inteiras a ver filmes de cowboys?

-Não, não lembro. Algumas vez fizemos isso?

-Não sei, talvez não. Mas podíamos ter feito.

-Sim, podíamos.

-Agora é a tua vez...




Ilustração de Marco Mendes

2.7.09

O Marcelo, Décima Oitava e Última Parte

Afastámo-nos do rio de braços dados. Palavra, dados. Assim fomos até à porta de sua casa. O vinho e a noite e eu fizeram-me dizer coisas que talvez não devesse ter dito, muito menos no tom em que as disse. Mas era noite e a Mariana só riu, sorriu e chamou-me tolinho. Despedimo-nos com um beijo. Era de noite, eu era tolinho, foi um bom beijo. Prometi-lhe ganhar mais concursos da rádio e fiquei a dizer adeus com a mão até a porta se fechar.

Não me apetecia voltar para casa. Tinha ganas de cantar alto, dançar, pular e dizer muitas vezes Mariana. O ridículo não mata quem ama, nada mata quem ama. Corri pela rua de braços abertos até me cansar e ficar sem ideias. Voltei para casa.

Entrei e procurei pelo Marcelo, se dormisse acordava-o, em dias assim os amigos imaginários não têm direito ao sono. Podia simular um tropeço e desculpar-me pelo barulho. Ele começa a fazer perguntas e eu faço-me rogado... “não deixa, falamos amanhã” assim até ele rebentar e me obrigar a despejar tudo, mesmo os pormenores. Sobretudo os pormenores. Onde parava o danado?

Sala, quarto, cozinha, varanda. Nada de Marcelo. Por onde andaria a estas horas? Provavelmente enfiado numa sala de jogo, a beber dos copos por uma palhinha. Ou então num bar de strip, onde a sua invisibilidade lhe proporcionava enormes desafios à imaginação.
Sentei-me e descalcei os sapatos. Procurei os chinelos do pato Donald mas não os encontrei. Espreitei para debaixo da cama e não os vi. Não vi os chinelos nem a mala de viagem nem os maços de notas que ela continha. Apenas um envelope, dentro um bilhete e uma nota grande.

Parabéns Alfredo, a rapariga tem mais méritos do que eu pensava, se não tens cuidado ainda faz de ti um homem.
Desapareci, como já deves ter percebido. Foi o que me pediste, não foi? Para dizer a verdade até me caiu a jeito, tenho sítios para ir. Tive o cuidado de levar a mala e o dinheiro, cada um com os seus ganhos. A mim sobram-me as paixões e a ti não te serve o dinheiro. Essa nota é para comprares outros chinelos e outro pijama, afeiçoei-me às riscas amarelas.
Se precisares de mim é só sonhar-me, mas poupa as fantasias. Muda de quiosque se for preciso, muda de cidade ou muda de vida mas não gastes as fantasias.
Agora vou para onde tenho de ir. Nada de ressentimentos rapaz, sobretudo nada de ressentimentos...
Marcelo



Fim

O Marcelo (Décima Sétima Parte)

Nesse dia passaram anos. Das oito da manhã às sete da tarde fui capaz de mil desejos e outras tantas fantasias. Enquanto as mãos andavam de cá para lá a passear papéis pelo escritório, eu fui feliz, fui desgraçado, casei-me, fugi para longe, abandonei e fui abandonado. Como são estas coisas da paixão. Como são ridículas, como são desejáveis.

Almocei com Marcelo e proibi-lhe a fala. Ele ria e eu calava. Quando terminámos pedi-lhe que desaparecesse até que o chamasse. Estava já demasiado cheio de imaginações, por uma vez arriscaria o real em mais vontade do que medo, ao menos uma vez.
Às seis e meia deixei o trabalho e fui comprar flores vermelhas. Levava-as pela rua e estava já com Mariana. As mulheres que amamos devem ser assim, capazes de chegar antes de chegarem.
Ao aproximar-me do quiosque o coração dançava-me, dançava a sério. Ela estava à espera e tinha o cabelo solto, mas as orelhas continuavam bonitas. Recebeu as flores e deu-me um beijo pequenino. Não, não foi nada pequenino. Caminhámos pela avenida nos passos um do outro e falámos de sei lá eu do que falámos. Palavras de passeio, de final de tarde, de rosas vermelhas, palavras excepcionais para usar em horas assim.

Chegámos ao rio e nem nos era preciso. Que importam águas a correr. Sentámo-nos na esplanada do restaurante e ficámos ali a brincar aos nervos. A Mariana falava com voz apagada e doce, falava dela, perguntava de mim, a família como era, a vida como era, os sonhos também. Ria escondida quando eu me atrapalhava e eu ria também, as águas corriam muito por detrás dela, longe da minha miopia. Comemos como comem as crianças, porque tem de ser. A nossa vontade era olhar e falar só por falar.A certa altura Mariana ficou vermelha e perguntou-me porque a tinha convidado. Eu recomecei a história do concurso e ela interrompeu-me com um silêncio benevolente. Então fiquei eu vermelho e pousei os olhos na mesa. Que havia eu de dizer? Saiu-me uma verdade atrapalhada que a Mariana ouviu muito bem. Então tocou-me na mão ao de leve e fez-se muito contente, a mão era quente, eu não sabia que era assim quente.

1.7.09

O Marcelo (Décima Sexta Parte)

Acordei cedo nessa manhã. Tão cedo que se eu cantasse acordaria galos. Mas onde eu vivo não há galos e eu também não sei cantar. Fiquei por algum tempo deitado a pensar na vida com letra pequena. Por qualquer motivo as manhãs fazem-me pensar só com verdades. Provavelmente porque estou ainda meio adormecido, sem lucidez para me saber enganar.

A minha vida antes do Marcelo era monótona, feita de muitas rotinas e solidão. Tinha-me longe das banalidades que se praticam mas substituí-as por outras muito minhas, com livros e filmes a fingirem experiências. Livros com cheiro de livros e filmes com cheiro de nada. Talvez fosse isso que me faltasse na vida, cheiros que não fossem os meus nem os de coisas mortas, cheiros que enchessem a casa e me acordassem pela manhã. Devia arranjar um cão ou uma namorada.

Levantei-me animado com a revelação. Lavei-me, fiz a barba e vesti-me à socapa para evitar os conselhos do Marcelo. Antes mal vestido que passear elegâncias alheias. O que eu estava prestes a fazer exigia-me por dentro e por fora. Saí de casa sem que ele acordasse e desci as escadas como se fosse entrar em palco. Pela rua via-se já movimento, gente que sai de casa antes dos outros e limpa as ruas de remelas. O quiosque Império estava ainda fechado e eu aproveitei para tomar o pequeno-almoço no café em frente. Comi um croissant, bebi um café e quando estava a acender o cigarro via-a chegar. Abriu a porta, carregou os pacotes dos jornais e começou a ordená-los. Decidi-me e levantei-me, melhor apanhá-la sozinha.

Estava bonita nessa manhã, como sempre mas mais. Tinha um vestido curto às flores e o cabelo apanhado em rabo-de-cavalo. Bonitas orelhas.
Dei-lhe os bons dias, ela deu-me o jornal e os cigarros e quando estava para pagar resolvi atacar. “Olhe, por acaso... bem, não quero parecer atrevido ou indiscreto, não o sou, pelo menos creio não o ser... bem, eu queria dizer-lhe que no outro dia, na rádio, havia um concurso desses de telefone e eu... sim, eu telefonei, um jantar para duas pessoas no “Beira-Rio” e pensei, não sei, não leve a mal, se calhar não devia ter dito nada, não ligue, é só que eu pensei...”
“Está a convidar-me para jantar consigo?” Eu devo ter dito que sim, não sei como, mas devo ter dito que sim. “Teria muito gosto, mas não acha que nos devíamos apresentar primeiro?” Eu devo ter dito que sim, não sei como, mas devo ter dito que sim.
“Mariana”
“Alfredo”
“Passe por cá à hora de fecho, lá pelas sete, assim ainda damos um passeio”
Um passeio, sim, teria muito gosto. Por alguns minutos fiquei incrédulo, parecia-me demasiado, excessivo, fora mesmo isso que ela dissera? Durou pouco a incredulidade, assim que me voltei vi o inevitável Marcelo mal disfarçado atrás de um jornal desportivo. Tinha ouvido tudo e repetia as frases de Mariana em todos os tons jocosos que conhecia, que eram muitos. Mas eu nem ouvia o Marcelo nem ouvia nada nem queria saber de nada, ela chamava-se Mariana, às sete íamos dar um passeio e depois jantar a dois, eu e a Mariana.
(Continua, em breve)
 
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