27.1.10

Acordar um Dia XXXIX

Acordar um dia confioso, tranquilo e sereno com duas pernas paralelas.

Sair de casa e notar que todos os homens se tinham transformado em papa-formigas.

Depois aconteceu o que sempre acontece nessas circunstâncias.


25.1.10

Exúvia II

Os Meus Óculos Sujos

Um dia enquanto pensava deu-me medo,

fui e sou uma criança tardia, daí o medo

de pensar que tudo o que eu bem sei

é tantas vezes meu e mal pensado.

Quando se vive em ciência certa,

por dentro, por prática, ciência de ganhar pão,

autoriza-se a cabeça a ter convicções,

a cabeça, logo a cabeça.

São coisas pequenas e fundamentais

derrotas tortas de andar à vida

a carregar sal nos olhos e a esquecer

alguns gestos simples e asseados.

Exúvia I

Chão

Ando nisto de rir algum tempo

começou com aquela distância parva

que inventámos por crueldade,

foi coisa de crueldade não foi?

Ao início era o som dos pés

que te levavam e eu ria,

os pés a ir contigo em cima

como um barco e tu nele.

Quando alguma porta se fechou

(nós nunca soubemos de portas)

eu ri também, de louco ri-me.

Foi num segundo desses que o chão

olhou para mim e eu fui incapaz

de me lembrar onde é que tu pisavas.

20.1.10

"A Recusa" de Franz Kafka

Aqui fica mudado para português, um outro modo de dizer "traduzido de forma livre e incompetente", um pequeno conto de Kafka encontrado em italiano numa edição da Mondadori.

A Recusa

Quando vejo uma rapariga bonita e lhe pergunto: “Ó jeitosa, queres vir dar uma volta?” e ela passa por mim em silêncio, é essa uma sua maneira de dizer:

Tu não és um duque de nome sonante, nem um americano encorpado com a envergadura de um índio, de olhos fixos no horizonte, de pele marcada pelo ar da pradaria e pelos rios que a atravessam; não viajaste pelos grandes lagos que ficam sei eu onde. Porque deveria eu, uma rapariga bonita, dar uma volta contigo? ”

Tu esqueces-te que não passas por mim de automóvel, oscilando levemente agitada pelos caminhos, nem eu vejo senhores que te sigam direitos nas suas librés, os quais, abençoando-te, caminhem em semicírculo na tua retaguarda. Os teus seios estão bem arrumados no teu corpete, mas as pernas e as ancas ressentem-se de tais contingências; levas um vestido de tafetá pregado, um vestido que era a nossa alegria do Outono que passou, e apesar de tudo tu sorris de vez em quando – carregando esse perigo mortal no teu corpo. “

" Sim, ambos temos razão, e para que de tal não nos apercebamos de modo irrevogável, será melhor, não achas, que cada um vá sozinho para sua casa. "

Franz Kafka

19.1.10

Acordar um Dia XXXVIII

Acordar um dia genuinamente bem disposto. Hoje uma boa percentagem das raparigas está mais bonita do que ontem, entre 10 e 20 por cento. De outras que nada se diga por segredos ou pirraça.

Hoje o sol deixou de ser uma entidade altamente especulativa e ao abrir do estore esperava já colado à janela com cara de garoto.

O homem da portagem assobiava e ria numa impossibilidade de dias normais. Ah essa gente das portagens.

Dias assim há-os às dúzias por todo o lado, mas quem tem tempo, quem se pode permitir o luxo dos dias bons?

14.1.10

Pela Rua um Homem

Um homem vai pela rua vai. Que se chame Pedro e trabalhe no comércio, numa pequena loja de cosméticos. Digamos que sim. Caminha pela rua e quer voltar a casa, são horas de voltar. Enquanto caminha recorda-se de uma cliente que atendeu nessa tarde. Uma cliente jovem e bonita que procurava uma cor de batom e não a sabia definir. Ela, a cliente, acreditava na necessidade absoluta dessa cor, mas não lhe sabia o nome. Pedro ficou a pensar nisso e depois pensou nos seus próprios absolutos para os quais lhe faltavam as palavras.

Ao passar pela porta aberta de uma casa velha, Pedro uma senhora de gatas que esfrega o chão, uma senhora a quem se pode chamar Conceição. A senhora Conceição faz assim, limpezas e arrumações. Trata do terceiro esquerdo, do terceiro direito e do segundo esquerdo. Mais as escadas e o hall de entrada. A manhã tinha sido do terceiro direito, casa dos Gouveia. Ele é advogado, ela a senhora Gouveia. Na noite anterior fez-se um jantar na casa dos Gouveia e hoje havia louça suja. Enquanto a senhora Conceição lavava a louça escorregaram-lhe as mãos e um prato. O prato caiu e fez-se em muitos pedaços de prato. A senhora Gouveia acorreu à cozinha e ficou a ver, depois começou a chorar muito. Desculpas e justificações não lhe estancaram o choro, talvez não fosse um pranto de prato, talvez fosse outra coisa qualquer.

Um choro de nervos, isso. A senhora Gouveia, um dia menina Sara, dizia a si própria que era assunto de nervos. Um prato partido não é morte de gente. Não. Quem se teria servido dele? Talvez o professor Antunes, amigo velho do seu marido, ou o Dr. Cândido, sócio da firma. Talvez tivesse sido a sua mulher, a quem a senhora Gouveia apanhara a meio do jantar a fazer olhinhos ao seu marido, o senhor Gouveia. Seja como for são certamente coisas de nervos, não é morte de gente.

O doutor Cândido está sozinho no escritório sentado à secretária. todos saíram e ele um livro sentado. O livro, escrito numa língua estrangeira, fala de coisas banais e é também banal o estilo com que foi escrito. Se alguém perguntasse ao doutor Cândido porque esse livro ele não saberia responder. O doutor Cândido está sozinho e de pouco vale entrar em fantasias.

 
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