29.4.12

Um Velho


O velho acordava com o sol, levantava-se, e ia até à janela somar pássaros; depois lavava-se, vestia-se, comia uma laranja e descia à rua com um número na cabeça.
O velho caminhava lento até à praça dos autocarros e procurava o número que trazia. Entrava no autocarro correspondente e escolhia um lugar ao fundo, de onde pudesse olhar e passar despercebido.
As pessoas entravam, liam o jornal ou conversavam e depois tocavam a campainha e saíam num lugar. Tantos lugares, pensava o velho, e imaginava o que fariam ali, torcendo as mãos nos gestos de escrever, martelar ou apertar parafusos.
A meio da manhã o autocarro chegava vazio à paragem terminal. Ele descia e ficava alguns instantes a olhar em volta. Por vezes chegava a subúrbios de prédios altos e cinzentos, outras a pequenas aldeias que resistiam a ser cidade.
O velho começava então a andar até encontrar um jardim, ou uma taberna, ou um centro de saúde onde estivessem outros velhos como ele. Mas diferentes dele.
Sentava-se a seu lado e dava os bons dias. Trocavam nomes, um aperto de mão, e em pouco tempo começavam a contar histórias da vida. Ele contava a sua e depois ouvia-os com atenção, anotando na cabeça os pormenores todos: as datas, os nomes dos filhos, dos netos e das ex-mulheres. Todos os velhos tinham histórias cheias de gente e de pormenores.
À tarde voltava para a casa vazia. Uma vida de tantos anos e as paredes sem fotos, e a memória branca, e nem cartas ou prendas.
Então o velho sentava-se à secretária e escrevia num caderno as histórias que escutara. Tudo muito devagar, decorando com cuidado as palavras exactas para o dia seguinte. 

(Texto concebido para o concurso Performance Architecture de Guimarães 2012)

26.4.12

Soma


A minha, o meu, e eu sem nenhum.
Sou apenas eu, e tão pouco às vezes.
O meu já anda, o meu aprendeu a falar.
O eu já dói e geme um pouco ao baixar.
Uma vida limpa, sem restos nem filhos,
ou amores a sério, ou obra que se veja.
Não estraguei nada e deixo o que achei:
um pedaço de ser quase por estrear.
Talvez um dia morra como quem desnasce,
as dores e os prazeres somados em nada
até à última casa decimal de porra nenhuma.
Terei aprendido às minhas grandes custas
A arte perfeita de apenas fazer horas.

23.4.12

Um Amor


O meu relógio parou em ti. A mesma música a tocar no rádio do carro e a mão que procura uma perna e se fecha contrariada.
Abro a janela para que fujas de vez. Escolho outros caminhos, evito bairros inteiros e cafés, bares e supermercados.
Comeste metade da cidade e às vezes perco-me a contornar rotundas sem saber para onde ir. Encurralaste-me fora de ti.
Foi culpa nossa, de amarmos por todo o lado como se aquilo não coubesse, como se uma vontade parva de tomar espaço e multiplicar por metros os centímetros de paixão.
Ali dormimos os dois.
As conversas que viravam esquinas e iam de tua casa para todo o lado. Não tenho por onde andar que não te ouça. Os teus dedos quentes por entre os meus aqui, aquela casa, lembras-te?
Lembro-me eu.
Foi um amor grande para uma cidade tão pequena. Não temos espaço para a indiferença, ou te amo ainda ou devo odiar-te e lutar por cada esplanada, por cada amigo, rua a rua, numa guerrilha de coração preso.
Foi culpa nossa, de não amarmos sempre no mesmo lugar como quem corta o cabelo ou compra o pão de cada dia. Agora é tarde, agora dou voltas infinitas às rotundas.
Vou emigrar de ti, levo a tua foto e um livro de poemas para olhar e lembrar o mapa do meu país. 

(Texto concebido para o concurso Performance Architecture de Guimarães 2012)


21.4.12

Um Prédio


No segundo esquerdo um homem morreu de desejo.
No terceiro direito viveu um padre que bateu com a cabeça em Deus e caiu em cima de uma mulher.
Debaixo das escadas da entrada um menino guarda pedras e vidros coloridos para um dia ser artista.
É um prédio frágil e sentimental, de tangos e boleros que tocam por dentro das paredes e se ouvem à noite só por sonhos. Quem lá mora enlouquece lentamente até fazer parte dele. É um prédio feito de muitas loucuras.
Há uma menina a dançar sozinha no rés-do-chão.
Há um cão que olha para a rua e ladra aos homens de bigode.
Há um velho doente que fuma sentado e se apaixona por todas as raparigas.
O prédio tosse e suspira e arrepia-se às vezes.
No terceiro esquerdo já não mora ninguém. As estantes da sala guardam restos de felicidade: fotografias, livros oferecidos, filmes que foram vistos a dois e que agora doem ao lembrar.
As janelas do prédio dão todas para dentro.
No segundo direito uma senhora antiga, um vestido negro e um desvario de mãos a bordar flores.
No primeiro esquerdo está um homem deitado ao lado de uma mulher que respira e dorme com o corpo todo.
Faz frio no prédio, sempre frio, mesmo no Verão. Quando alguém entra tem de vestir um casaco, ou sentir tristeza ou acender o que puder arder.
No primeiro direito uma rapariga de olhos fechados grita sozinha com medo do que lhe pode acontecer.

(Texto concebido para o concurso Performance Architecture de Guimarães 2012)

16.4.12

Lugar

A cidade tem culpas por dentro da gente.
Andamos por cima da cidade, polimos-lhe as esquinas e até dormimos nela. Temos medo, e confiamos em membranas que nos protejam: a sola dos sapatos, as roupas que trazemos, janelas ou pálpebras fechadas.
Mas a cidade tem dedos finos que entram pelos olhos e pelas narinas e pelo meio de tudo. Dedos que agarram por dentro e não largam mais. 
É negro o chão da cidade e nem sabemos porquê. Talvez o queiramos assim, talvez o não saibamos evitar. Como seriam as vidas se assentassem noutras cores?
A cidade é uma insónia de todas as horas, frémito nosso nela, nós nisso, nós o que bule, o que intoxica e mata. A cidade mata todos os dias.
Aqui morrem duas vírgula oito pessoas por dia. Duas pessoas e oito décimas de pessoa a morrer todos os dias.
Somos células especializadas da cidade. Limpamos, construímos, carregamos partes de um lugar para outro, transformamos energia em movimento e pensamos por ela. Células que morrem e nascem todos os dias, partes que adoecem e multiplicam.
Somos partes pequenas e fundamentais, vivemos enquanto servimos, até que se esqueçam de nós ou nos falte o amor.
Foi a cidade que inventou o amor.
Não podemos amar sem geometria. Ruas que cruzam ruas, esquinas que dobram vidas, jardins onde os corpos passeiam e se escondem, um tecto onde o amor cresce e se alimenta de noite.
São de toda a importância as árvores da cidade, como os candeeiros, a cor dos contentores, a inclinação das ruas e os desenhos na calçada.
Pode muito bem amar-se só por estarmos aqui.

(Texto concebido para o concurso Performance Architecture de Guimarães 2012)

14.4.12

Desiderata

Sim, meu amor, às vezes, muitas vezes, embriago-me de mim.
Sou disso e pior ainda, como sonhar com sonhos, ou morrer acordado.
Não tenho nada para dar, mas prometo roubar o que puder, assim, amor.
Não garanto nada que possas lembrar, mas sou fácil de esquecer.
Declino-me em tudo o que é fraco e pobre, e desilusões também sou.
Ranjo os dentes a dormir e grito os nomes de outras mulheres.
Engano-me mais do que a ti, mas vou enganar-te a ti.
Tirando isso, prometo-te tudo, por quem me tomas, amor?

9.4.12

How Soon Was Then

Eu conhecia as letras todas
porque havia de ser preciso
cantar amor a qualquer hora
De manhã à porta da escola,
nos bilhetes de mão em mão,
e à noite virado para o tecto
O amor dizia-se em inglês
porque não cabia na língua
pobre de todos os meus dias
Veio depois a vida inteira
e desse amor só um pouco
que ainda pude lembrar
Agora canto os lalalas
de palavras muito iguais
e sempre mais estrangeiras

1.4.12

queda de um grave

a sonhar tu saltaste e eu caí
parti um braço e perdi-te para o ar
agora quando sonho eu caio e tu voas
trago o braço direito parado no peito
e digo-te adeus com tudo o que é esquerdo

 
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