31.1.09

Em Forma de Verdade

A vida não continua. A vida, minha, tua e das pessoas, está sempre amarrada a uma estaca. Ao pescoço temos uma corda de um tamanho que não merecemos e à nossa frente a relva rala que vamos comendo em círculo. Por isso não me venhas dizer que a vida continua. A tua vida continua? Para onde? Eu não saí daqui e vi-a ontem, via-a hoje e vou vê-la amanhã. Somos vizinhos de estaca. Não digas idiotices por favor. Se eu acreditasse talvez tu acreditasses também, e depois? Ríamo-nos, enchíamo-nos de substâncias que os nossos corpos não produzem e chorávamos às escondidas, não era? Deixa-me insistir na semântica. Vai-se andando sim, os dias vão sendo um de cada vez, o sol ainda nasce cada manhã e também hoje comemos pão; mas a vida não continua e as estrelas não precisam de nós.

30.1.09

Alomorfia

E em desencontro ao sonhador de fábulas muito se enfadou um dia o bom Deus. Do alto do seu divino arbítrio, que é eterno e justo e bom, Deus viu o fabulador e nos pergaminhos da sua alma leu grandes infâmias e grande desacordo. E de todas as invenções de mau engenho, nenhuma Lhe era de maior vileza do que essa de artes mui contra natura, de fazer de um animal um homem e de um homem fazer besta sem baptismo. E assim o bom Deus resolveu castigar o fabulador.

Por todos os seus dias na terra, o criador de fábulas haveria de ser confundido e teria muitas dores e grandes aflições. Ao nascer de cada aurora, com os primeiros raios de sol que acordam quantos dormem o sono tranquilo dos filhos de Deus, o fabulador sentirá grandes sobressaltos. Os seus braços se abrirão num despedaçar de carnes e sangue e outros braços surgirão onde esses haviam sido. A sua face haverá de derreter-se como água do gelo e no seu lugar uma outra surgirá igual à que se perdera. Os seus olhos haverão de mirrar e cair das órbitas juntando-se ao pó dos caminhos. No seu lugar outros olhos se farão, tão iguais e perfeitos aos que antes foram.

A cada dia por sobre a terra, o fabulador se transformará em si mesmo com grande estupor e espanto. A cada dia ele deixará de ser para voltar a si, no mesmo corpo que sempre foi e que sempre será.
Que assim se cumpra a vontade de Deus e a pena do sonhador.

29.1.09

Acordar Um Dia XI

Acordar um dia com a bruma da cidade a ensopar o lençol



(Cidade de Marco Mendes)

Rotina

Saiu um dia para a rua sem a cabeça. Ao final da manhã, quando ia já em meio dia de trabalho, apercebeu-se do sucedido. Deu um salto a casa à hora do almoço e remendou o esquecimento.
O incidente não o tornou mais sábio ou mais cauteloso, mas dá-lhe muita vontade de rir.
Deixou-lhe também algumas dúvidas quanto à utilidade de certas usanças.

27.1.09

Cenário

Não posso porém deixar de me espantar. São certas horas costeiras de um cenário tão preparado, tão assim sem palavras. Como por exemplo daquela vez em, lembras-te não lembras? Como dessa vez. Essa mesma coreografia rigorosa e descuidada que resultou em beijos e palavras excessivas. O desenho das gaivotas que olhavam para nós à espera de entusiasmos de voo e vento. O baixo-relevo de muitas conchas exaustas à nossa espera. Sacanas das conchas. E isso era só o que nós víamos, dos peixes eu adivinhava outro engenho, bailados sóbrios com reflexos de extravagância. E tu também adivinhaste, não foi? Sacana de ti.

Havia também o resto, os colegas de espécie, os que corriam e faziam pose, os que serviam cafés e entravam no mar como se fosse deles, (o mar que era nosso, lembras-te que era nosso?). E as crianças tão espertas que faziam de gente? E os que cantavam sozinhos a fazer conta de silêncios? E os que escreviam versos nojentos que não nos mencionavam?
Outros sorriam com um ar inteligente de haver espreitado segredos. Mas que segredos? Se eles soubessem (mas tu não lhes digas, não lhes digas nada) que esta luz branca e enviesada fez cento e cinquenta milhões de quilómetros só para me queimar os olhos e fechá-los para ti... Sacana da luz. Mas foi assim que fizemos, não foi assim que fizemos?

Acordar Um Dia X


25.1.09

Acordar Um Dia IX

Acordar um dia qualquer que seja domingo de manhã. Não demasiada manhã. Levantar-se sem fazer barulho e ir até à cozinha. Fazer um pequeno-almoço de hotel com sumo de laranja, sem juntar água. Voltar para o quarto. Tomar o pequeno-almoço na cama e sorrir. Fingir espanto pela metade que sobra. Sorrir de novo. Sair para a rua demorando o passo aqui e ali. Enfadar-se, pouco. Subornar um cão vadio e passeá-lo por um jardim. Sorrir alto. Voltar para casa assobiando aquela música. Sentar-se ao computador. Relembrar certas habilidades. Invadir a central de GPS e mandar toda a gente para a puta que os pariu.

24.1.09

Para ti, Tomé

Enquanto eu fui pequeno, numa gaiola lá de casa moraram alguns periquitos. Os periquitos, verdes e amarelos uns, azuis e amarelos outros, têm o costume de falecer em tempo anterior aos seus proprietários. Assim aconteceu lá em casa, pelo que a mim compete contar a história.

A gaiola dos meus periquitos era o apartamento de classe média dos psitaciformes. Não era de grandes luxos mas tinha asseio, água, e alpista nas caixinhas. Uma bênção.
Os maraus tinham-me custado uma prenda de aniversário. E eu nunca abria a gaiola. Minto. Às vezes arriscava por lá a mão e era um desatino de penas até conseguir agarrar um. Sentia-lhe a taquicardia caguinchas, fingia-me muito grande, e retirava a mão com um estalar da porta. Era um lindo desenfado.

Eu observava os passaritos com muita atenção. Gostava de os ver doidos com o cheiro da comida, de como esvoaçavam para serem os primeiros a chegar às manjedoiras pequenitas. Tanto observei que um dia quis experimentar um ardil. Tão simples e inocente quanto hoje o vejo subtil e pérfido.
Uma das minhas mãos segurava o comedoiro atulhado, a outra segurava a porta. Então eu escancarei a portinhola e ao mesmo tempo coloquei o comedoiro no sítio. Afastei-me ligeiramente e fiquei ali com o coração aos pulos (desta feita era eu) a ver no que dava o exercício. O risco era real. Ah mas os pobres, os tolos animais nem as cabeças puseram fora dos aposentos, foi o mesmo corrupio de asas e bicos para ver quem enfardava mais grãozinhos. O Tomé ainda olhou de raspão para a janelita, mas depois fez como os outros e apaziguou as ânsias, pela goela.

O rapazito que então era eu, fechou a gaiola e dormiu mais uma noite sem filosofia. No outro dia acordou, acordei, e assim dormindo e acordando se seguiram os dias sem mais pensar em pássaros nem em gaiolas.

Mas é que às vezes, dessas e outras vezes, doem-me certas partes pequeninas de estar vivo. Como aos outros, que também estão vivos. E é então que eu me levanto com os braços encolhidos a dar a dar. Esvoaço pela sala num pânico muito meu e vou piscando o olho a um Deus cretino e pueril.

23.1.09

Acordar Um Dia VIII

Acordar um dia e dizer-te coisas muito belas. Demasiado belas, exageradamente belas. Deixar-te incomodada. Criar um desconforto que cresce até se tornar insustentável.
Alimentá-lo sem saber e perder-te diversas vezes.

22.1.09

Concomitâncias

Tudo aconteceu quando ele tinha apenas vinte e dois anos de uma vida muito como podem ser todas as outras. Uma escala demorada em Paris, uma pausa a caminho de sítios menos civilizados e de um futuro triste, triste. Mas isso só o viria a saber mais tarde, de forma demasiado progressiva para que soubesse reagir.
Um passeio deslumbrado levou-o a todos os sítios a que tais passeios devem levar. Era uma cidade feita para esse efeito, onde tudo era grande, asseado e bem arranjado. Ele que vinha de uma arrecadação sentia-se ali um intruso, na sala de mostrar aos hóspedes. Foi–se espantando e caminhando até ser acometido pela síndrome de Stendhal dos pequeninos, que se manifesta numa vontade louca de beber uma cerveja gelada na esplanada mais próxima.

Estava assim entretido nestas actividades terapêuticas quando se lhe encalhou o olhar num par de olhos perdidos, por ventura pertencentes a um esplêndido membro do sexo oposto. Os sorrisos mútuos foram mais fortes que o embaraço e superaram as diferenças linguísticas, em pouco segundos a distância que os separava tinha o diâmetro de uma mesa de café. O rumor protervo do café e alguns copos de uma cerveja vermelha criaram entre ambos uma intimidade instantânea, bem à medida dos desejos.

Desde que saíram do café até se despedirem nebulentos na estação de comboios, todas as horas foram suas e correram ao ritmo dos sonhos bons. As poucas palavras ditas pareciam vir de um tempo alheio, mais feito de impulsos que de sentidos. O resto foi silêncio, o som de corpos emocionados que pareciam saber mais do que haviam aprendido. Numa mesma noite, ele descobriu Paris, a alegria de um corpo solto e muitas outras coisas para as quais não tinha ainda nome.

No percurso da sua vida essa foi uma noite extravagante pintada em cores de excesso. Um Miró pendurado num salão vitoriano. Nos anos que se seguiram ele fez o que toda a gente faz. Trabalhar, acumular capital, casa, mulher, filhos, aparelhos domésticos e de transporte, promoções, outras máquinas para fazer sabe-se lá o quê, amantes mais ou menos remuneradas, ginásio e fins-de-semana à beira mar. E assim até rebentar, como se costuma fazer.
Foram trinta anos disto. Muitos dias a fingir querenças e a adiar vontades, muitos pequenos prazeres a cobrirem enormes loucuras. Quantas montanhas, mares e serralhos lhe visitaram os sonhos encolhidos ao canto do leito conjugal. Assim foi sendo até que não pôde mais continuar. Filhos emancipados, uma menopausa precoce com direito a cursos de pintura e ei-lo que inventa uma viagem de negócios até à sua bem recordada Paris.

Desceu no mesmo aeroporto que o vira partir e acreditou sentir no ar um cheiro familiar. Passeou o mesmo deslumbre pela cidade condescendente e procurou as pegadas invisíveis de alguém que já tinha sido. Um trânsito em espiral de centro delongado no café ainda aberto. A mesma mesa, a mesma hora do dia, trinta anos passados.
De gestos encadeados pediu a cerveja vermelha e ao pousar o copo dirigiu os olhos para uma esperança remota. E foi assim mesmo, com todas as probabilidades em seu desfavor, que viu as ridículas expectativas reflectidas num espelho da parede longínqua. Era ele que se olhava a si que se olhava. Duas, três, quatro cervejas e ela não apareceu, não se interrompeu o triste caminho óptico de uma vontade que mira um passado. Nada.

Levantou-se com a cabeça à roda e o resto também à roda. Era inútil. Ele sempre tinha sido uma pessoa de fé, mas de nada servia ignorar certas subtilezas do destino.

21.1.09

Detalhes

Decidiu finalmente fazer a operação de mudança de sexo e após algum tempo apercebeu-se que tinha cometido um erro. Seja como for, os amigos prepararam-lhe uma grande festa e deram-lhe óptimos presentes, alguns deles particularmente valiosos.
Gostava também do seu novo guarda-roupa e já não estava em idade para se chatear com pequenos detalhes.

20.1.09

Acordar Um Dia VII

Acordar um dia e ter de partir.




Ilustração de Marco Mendes, como sempre.

Num Bar, na Baixa

O bar ficava numa rua escondida da baixa e a clientela era constituída quase exclusivamente por homens com mais de quarenta anos. O balcão de madeira e o ar familiar lembravam uma série americana, aparte os tremoços e o benfica no televisor. Ele estava sentado no canto e emborcava diligentemente mini atrás de mini, preta. Sorri ao cliché e sentei-me a seu lado. Quando chegou o intervalo (e com ele o vazio), começámos a juntar palavras aos tremoços.
Trocaram-se as banalidades de circunstância, oarbitromaisestesladrõeseocaralhoqueosfodaatodos, mas acabaram os tremoços e pouco depois estava a contar-me que nos últimos dois anos tinha perdido a mulher e dois filhos. Disse-me também que antes praticamente não bebia, e que de todas as vezes tinha quase conseguido parar, até que morria mais alguém e tornava ao mesmo. Graças ao álcool, tinha perdido o emprego e o subsídio era todo trocado em minis. Assim também ele se ia convertendo em pedaços, em trocos. Chamava-se a si mesmo um alcoólico do luto. Disse-lhe que não (tínhamos a segunda parte pela frente), que era o resultado da tragédia e que não se culpasse. Ele sorriu, olhou para mim e falou lentamente: então, por que é que eu os matei?
(Publicado na Revista Minguante)

Tautologias

Há pessoas que são felizes com pessoas que são infelizes, muitas vezes graças a outras pessoas que não querem saber da felicidade para nada, mesmo sendo felizes.

Há pessoas que são razoavelmente felizes porque ainda não perceberam que são razoavelmente infelizes. Outras não.

Certas pessoas ainda não perceberam se são felizes, mas se calhar são, ou então não são. Mas está bem assim.

Há pessoas que não sabem o que é a felicidade, o que é uma grande fortuna, sobretudo se são infelizes.

Existem muitos tipos de pessoas, muitos graus de felicidade e muitas formas de lidar com isso, e está bem assim.

19.1.09

Acordar Um Dia VI

Acordar um dia devagarinho, com cuidado, sussurando-lhe ao ouvido para não o estragar.

18.1.09

Às tantas

- Olha que giro, com as orelhas brancas e o focinhito preto
- Sim, mas sabes que não gosto muito de cães...
- Preferes gatos?
- Hummm, também não sou grande fã
- Dizem que quem não gosta de animais também não gosta de pessoas
- Pois, então é capaz de ser isso.

16.1.09

Crimes Exemplares

Gostou tanto do Crimes Exemplares que depois de o haver lido resolveu matar a vizinha por coisas de somenos importância. Encontra-se agora preso e muitas vezes arrependido.
A verdade é que nunca percebeu nada de literatura nem de coisa nenhuma.

Acordar Um Dia V

Acordar um dia com um mamífero monotrémato de aspecto fusiforme a dar-nos beijinhos com o bico córneo. Como se não fossem já suficientes a ressaca e o remorso.

15.1.09

A Festa Foi Ontem

É este um povo demente
De bandeiras na janela
E o avô no hospital
Gente pobre e doente
Cravo murcho na lapela
E galinhas no quintal

Gente estranha infeliz
Que canta em vez de chorar
Rosto murcho insolente
Em surdina alguém diz
Já morreu em nós um mar
É este um povo demente

Madrugada nua e crua
Olhos brancos de remela
Marcha forçada brutal
Vai o povo pela rua
De bandeiras na janela
E o avô no hospital

Na margem de uma avenida
Pára um carro e ao volante
Um bigode de cliente
Desce uma Rosa Maria
Passo torto e minguante
Gente pobre e doente

E há um velho ainda ledo
Encostado a uma capela
Que se chama Portugal
Canta um fado do Alfredo
Cravo murcho na lapela
E galinhas no quintal

(Versão do "Há Festa na Mouraria" de António Amargo e Alfredo Marceneiro, publicada na Revista Minguante)

14.1.09

Acordar Um Dia IV

Acordar um dia no Porto




(Ilustração de Marco Mendes, esta e outras em Diário Rasgado)

Golden Years II

Ontem, como todas as terças, tomei o pequeno almoço com uma senhora de outro tempo. Eu cheguei atrasado, um velho hábito meu, ela chegou sessenta e cinco anos mais cedo, como também costuma fazer. Sentámo-nos na mesma mesa de sempre, num canto do café encostados a uma grande janela. Ela sorri vendo os soldados que voltam para o quartel abraçados às prostitutas, enquanto eu me entristeço ao ver os netos obesos que balanceiam rua abaixo fardados de turistas.
Ali ficamos pouco mais de um quarto de hora a debicar os croissants, ela acompanha o seu com um cappuccino enquanto eu bebo um sumo de laranja seguido de um café curto curto. Nenhum de nós diz qualquer palavra, mas por vezes, sem que me aperceba, escapa-me a melodia murmurada de uma música que ela ainda não sabe cantar.
Ela olha para mim sem me ver e eu olho para ela sem ver mais nada. Vejo-a num caleidoscópio temporal feito de muitas personagens, diversos sorrisos e algumas lágrimas falsas (algumas não). Reprimo o meu desejo de a beijar imaginando que não é real (como se a realidade me fosse necessária para o que quer que seja) e fico ali a fumar sozinho ao vê-la levantar-se e caminhar elegante para longe de mim. Sem aceno nem adeus, sem nada.

13.1.09

Acordar Um Dia III

Acordar um dia e acreditar que sim.
Tentar por todos os meios e falhar.
Fazer planos de acordar num outro dia.

12.1.09

Anomalias

Acordou de repente com a luz do dia a abanar-lhe o espírito. Viu o tecto do quarto coberto de algas, os raios verdes de um sol azul a entrarem pela janela, e percebeu que o sonho não tinha ficado nos lençóis. Abriu caminho por entre as fêmeas que lhe ocupavam a cama e dissimulou o espanto perante o número improvável de seios. Correu através de um corredor sem fim até chegar à casa de banho que se abriu debaixo de si. Mirou-se num espelho negro e viu-se sem dentes nem cabelo numa cara que era a do seu pai e de um certo filho que não tinha tido.
Calçou uma meia verde num pé e uma meia amarela no outro pé numa ânsia nervosa de antecipar o destino, mas saiu de casa com os pés trocados e o pijama em desalinho. Cumprimentou todos os animais que encontrou pela estrada, mesmo os que o tinham abandonado numa manhã de S. João (com fogueiras frias que levavam ao mar, mesmo mesmo à beira mar).
Foi cruzando ruas com nomes de canções de outras músicas que não essas, e começou a habituar-se às quedas, essas terríveis quedas que ao início lhe causavam tanta angústia. Descobriu que lhe bastava adormecer, uma brevíssima fracção de segundo que lhe amortecesse a queda e o fizesse acordar no cimento em forma de relva que lhe picava os pés trocados (os dois pés trocados).
Foi caindo e voando a preto e branco até chegar à porta do escritório. Um escritório roubado de um filme que nunca tinha lido e onde um porteiro o saudou por um nome que poderia muito bem ser o seu. Teve o cuidado de escancarar a braguilha, sujar a gravata de molho de tomate e entrou triunfante na fábrica absurda e redundante onde o baile já tinha começado. E foi nos braços da Teresinha, a Teresinha de olhos brancos e poluções precoces que girou e riu até ser noite escura, muito mais escura do que pode e deve ser a noite.
Deu por si deitado num cansaço de muitos anos e de muitos risos contidos, cheio de mágoas e desejos mal cumpridos, com pessoas conhecidas que lhe ajeitavam os cobertores. Fixou os amigos e os outros que o poderiam ter sido e fechou os olhos de todos eles com os seus.
Chorou então os últimos medos e matou os últimos desejos, preparou-se para um derradeiro sonho de ideias e decisões, de pessoas que dizem “como está” e “muito gosto em conhecê-lo”, que vivem segundo princípios e objectivos e outras coisas importantes e, nesse instante, nesse mínimo instante em que uma parede deixa de ser parede para começar a ser chão, teve a certeza de que nada é mais do que tudo o que poderia ser.

Acordar Um Dia II

Acordar um dia com o corpo coberto de pêlo às riscas, as unhas serem garras, as mão patas, os dentes presas e a mulher pequeno-almoço.

11.1.09

Eu e Ela e Ele

E nós que nos dávamos tão bem?. E dávamo-nos tanto e com tanta vontade que eu tinha ganas de não ser eu para nos poder ver e admirar do quanto nos éramos dados.
E ela tão sensível e tão delicada, que me sorria com o corpo todo e me fazia festas como se eu fosse um animal. Como aliás fazia ao Galileu, o seu gato de estimação.
E eu que sou tão alérgico aos felinos, que espirro e comicho como poucos possam espirrar e comichar face a tão macios animais?
E os anti-histamínicos que davam cabo de mim e me davam dores de cabeça, tonturas, diarreias, perda de libido e impotência?
E os gatos que caem de pé e sem mágoa se atirados do segundo andar? E os mesmos animais que ficam mancos e desorientados se impulsionados do quinto esquerdo?
E os sacanas dos bicharocos que dão em morrer e rasgar as entranhas se lhes falta o sustento num sétimo andar direito? Onde calhava viver a minha Aninhas.
(Publicado na Revista Minguante)

Boa tarde e obrigado

Esta é a sexta vez que a vejo. Noto que me olha com cada vez mais agrado. Chamem-lhe química ou desejo ou tesão, mas há ali algo que tem certamente um nome.
Devo reconhecer que é simpática para toda a gente e que cruza o seu com o olhar de tantos outros homens. Sim, é verdade. Mas há ali um não sei quê de atrevimento, um langor todo feminino que me dá mais alguns segundos que são só meus.
Eu preparo o discurso e ensaio-o até à máxima eficiência. Ah, mas é tão rápido, quantas palavras poderá ela escutar por entre gestos tão mecânicos? Por quanto sejam graciosos...
Pelas minhas contas faltar-me-ão ainda sete ou oito passagens, sete ou oito carrinhos cheios a transbordar até que a possa convidar para um café à saída do supermercado.

Mágoa

Os gestos eram iguais; os mesmos gritos abafados, a mesma resistência inicial e a rendição após alguns segundos. Esta era um pouco mais alta e miúda de cara, por tudo o resto, incluindo os modos, poderiam ser irmãs. Segui o mesmo procedimento com ambas; sem palavras, sem violência mas com uma firmeza decidida. Recordo-me que com Sofia demorou mais tempo e que, embora no mesmo jardim e apenas alguns dias mais tarde, o tempo era mais frio e húmido. Teria sido isso?
Passaram quase três anos desse esse dia e não me conformo que tenha informado a polícia.

Prodígio Enjeitado

Então ele mandou pôr dois peixes e cinco pães em cima de uma grande mesa. Ordenou que estes se cobrissem com uma toalha branca e pediu a todos que se afastassem. De seguida ele olhou para o céu através do telhado em ruínas e pediu ao pai, pelo buraco de uma telha partida, que procedesse ao milagre algébrico que fizesse de um peixe vários peixes e de um pão outros pães. Em tudo isto não é certo que de alguns pães não tenha ele feito peixes e de algum peixe não tenham resultado pães. A toalha cobriu os segredos do processo e as gentes raramente são sensíveis às subtilezas quando de comer se trata.
Mandou então afastar a toalha e os assistentes assim procederam, sem nunca descurarem certos modos solenes próprios de tais funções. Ele arregalou muito os olhos, abriu os braços e franziu a testa numa surpresa muito ensaiada, enquanto mostrava à sua frente uma enorme quantidade de pães e peixes em duas pilhas ordenadas. As gentes olharam-se em espanto premeditado e logo começaram a bater palmas e a dar vivas aclamando a aberração gastronómica.
Ele continuava de braços e olhos esgargalados e as gentes gritavam mais e aplaudiam com mais força e davam pulos nervosos com medo de o não contentarem. Depois encheram suas bocas de pão e pedaços de peixe cru dizendo que era bom para em seguida fugirem para um canto e vomitarem sem que ele os visse. Foi assim até chegar a noite e não restarem pães nem peixes e haver grande fastio e todos terem grande vontade de voltar a casa e esquecer quanto pudesse vir a ser esquecido.
Por todo o povoado se mascaram toda a noite ervas e mistelas com o malogrado intuito de combater as repugnâncias dos palatos. Ele partiu pela manhã sorrindo de alto aos rostos agoniados e insones que haviam querido certificar-se do saimento, com uma mão o entregavamao pai em falsos acenos e com a outra seguravam fresquíssimas folhas de hortelã que iam mastigando pelos intervalos dos sorrisos amarelos.
A partir desse dia todos os tectos da aldeia foram remendados. As cabras continuaram a ser criadas como até aí e algumas eram sacrificadas a deuses distantes. Os forasteiros eram tratados a paus e pedras e nenhum se atreveu a voltar. Aos homens que não pagavam as suas dívidas e às mulheres infiéis, era deixado pela manhã um monte de peixe às suas portas e era-lhes reservada uma injúria que as gerações vindouras não conseguirão compreender.

Construção

Este texto que agora escrevo não foi preparado, pensado, ou ditado por qualquer imperativo estético ou de corrente. Peço antecipadamente desculpa por quaisquer erros ou falhas que nele encontreis as quais se devem apenas e só à incompetência e desleixo do autor que a vós se dirige. Apelo à vossa compreensão e predisponho-me a fazer as correcções e adendas que os excelentíssimos leitores considerarem pertinentes ou oportunas. Termino este meu contributo sabendo que a vossa atenta leitura será da maior importância para o enriquecimento do mesmo e para o seu desenvolvimento. Muito obrigado

Existencialismo

- Tenho 30 anos e nunca fiz amor com uma negra. Nunca comi lagosta, nunca andei num Ferrari nem vi os Alpes. Nunca entrei numa orgia, experimentei drogas ou conheci alguém verdadeiramente famoso.
- Não penses nesses termos...
- Foram trinta anos sem aparecer na televisão, aprender a tocar um instrumento ou a dançar tango. Pelo menos alguma experiência homossexual, ou um salto de paraquedas, algo que pudesse contar ou esconder mas que me fizesse sentir vivo e único.
- Sim, mas tens de ver que apesar de tudo és uma tartaruga
- Pois, e depois há ainda isso...

10.1.09

Tornou-se budista porque precisava de espiritualidade, comprou um gato porque precisava de companhia, começou as consultas no psiquiatra para ter alguém que a compreendesse, começou um curso de dança porque se queria divertir.
Deixou-me porque não lhe fazia falta.
(publicado na revista Minguante)

Acordar Um Dia

Acordar um dia e perceber que toda a vida não passara de um sonho palerma.
Levantar-se, lavar a cara, olhar-se ao espelho e voltar para a cama.
 
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