21.11.10

Malacia

No comboio nocturno gente daqui para lá. Os vidros espelhados confundem o exterior com o que vai dentro e todos paisagem de olhos alheios.
Já não se fala nos comboios como se falava nos comboios.
Os desconhecidos são-no cada vez mais, profissionais de nunca os termos visto. Ninguém pede o jornal emprestado, ninguém corteja, já quase ninguém assobia.
Uma menina diz as terras, a voz da menina, ela não se encontra, passageira só de voz. A próxima paragem… As terras que se inventaram pelo meio das que se conhecem. A menina sabe-as todas, a voz da menina.
Os que vão sozinhos carregam com os dedos nos telemóveis ou falam com eles. Tanta gente a comunicar e tão poucos os que falam.
Nunca os revisores foram tão magros, nunca as carruagens tão limpas e tão às luzes, parece parva a noite e as terras dos nomes.
O som das rodas mal se ouve em cima das rodas, escondem tudo esses ladrões, anda tudo bem escondido. 

14.11.10

Afrodite




Uma fronteira desenhada num papel branco tão branco. O que eu penso, o que eu sou, confina no traço escuro de uma mão que me é estranha e não me toca.
A dor é de dentro, o prazer, o frio, a solidão que vai aqui.
A forma é minha, a forma é desenhada e levada num olhar, nesses olhos que roubam e por isso espelham almas e gente e o que está dentro. O que tens, dá-me a tua forma, serves-me assim.
Cabem vidas inteiras no corpo magro de uma mulher.
As noites de um corpo voam no papel e queimam tudo, asas pequeninas de horas atrás de horas, voos tortos e tão pequenos. Dá-me um contorno que seja meu, um volume onde guardar o que me pesa.

7.11.10

Um Grande Escritor

Vi um grande escritor por detrás de óculos muito escuros.
Um cartaz anunciava-o disposto a assinar livros a quem os comprasse, eu tinha o meu e cheguei-me. O escritor estava sentado com um homem ao lado e uma fila de gente à frente.
Foi no meio de um centro comercial, entre a cozinha típica da avó (que avó, deus meu da idiotice, que avó?) e uma loja de cuecas e meias.
Havia também palhaços a esculpir balões e meninas que vendiam seguros e telemóveis e sorrisos que eram cãibras rasgadas na maquilhagem.
Eu pus-me na fila com o meu livro, e o livro é triste e profundo e eu fui ali à procura de consolo e perspectiva, para ver um homem que risse e dissesse que tudo estava bem, era só um livro afinal.
Mas o escritor tinha óculos escuros e dava à mão como os palhaços e sorria como as meninas e eu apertava o livro e senti a tristeza na pele apesar da foto colorida da capa que alguém inventou para o desculpar.
Havia música alta e anúncios e promoções, crianças que apontavam o grande escritor e riam dos óculos e eu na fila a apertar. Uma senhora dizia que desde que o outro morrera este era o maior e levava quatro livros na mão, a outra dizia que sim e carregava três.
Uma menina de uma marca qualquer aproximou-se de um senhor idoso que a sacudiu com a mão e por um instante, por um brevíssimo instante, o rosto caiu-lhe numa expressão que era humana e que eu pude entender.
Foi em cima do livro triste que eu assinei o que ela me pediu. Tinha os olhos castanhos e banais, olhos que se viam e eu assinei por cima do livro um contrato que segundo a menina me vai deixar muito satisfeito. 
 
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