29.9.09

Coisas da Rua



Parar o próprio movimento e ficar ali, debaixo de uma velha canção dos Smiths que vem mais da memória do que do rádio. Sujeitar-se ao que de pior pode acontecer a certas horas em que a chuva não nos entende.

Quando o verde chegar pode ser já demasiado tarde.


(Ilustração de Marco Mendes, Now also in English)

27.9.09

Uma Fábula Eleitoral

Era uma vez, antes ou depois de agora, uma terra onde as pessoas viviam. Era uma terra abençoada por Deus e por outros, cheia de tudo o que se quer para viver e onde os dias seguiam tranquilos ao som de música e palavras doces. Nessa terra que se perdeu, os políticos eram homens notáveis e amados pelas populações. As sucessivas gerações de estadistas foram aprimorando os caracteres e assim se criou uma elite virtuosa capaz de satisfazer as necessidades e os desejos dos eleitores.

As pessoas perceberam então que com uma tal classe dirigente não fazia sentido que fosse o povo a escolher os políticos, deveriam ser estes a decidir que gente representar. Assim começaram as campanhas, os diferentes povos mimavam os políticos, faziam-lhes promessas, beijavam-lhes os filhos e davam-lhes presentes. Todos tentavam convencer os grandes líderes, aliciando-os para que os escolhessem a eles como súbditos. Nenhum povo olhava a meios para ganhar os favores de um dos iluminados.

Este sistema durou algum tempo e segundo alguns estudiosos foi a causa do declínio dessa terra. Nos registos de época encontram-se artigos e crónicas em que os líderes, embora louvando os méritos de um tal sistema democrático, explicavam que o problema não era das eleições, mas sim dos povos que eram sempre os mesmos.

22.9.09

Procura-se II

Pessoa feita triste por verbos pretéritos e palavras ouvidas.
Alguém que seja capaz de se surpreender com gestos incompletos e actos falhados.
Pede-se o favor de responder através de um sorriso vago que possa ser tudo.

19.9.09

Menina em Forma de Recta / Bambina in Forma di Retta

Menina em Forma de Recta

A verdade é que não era uma menina. Ou melhor, sim, era uma menina. Tinha permanecido assim quando todos os outros se haviam esquecido do que eram. Alguém terá ditoEla é como é” e tinha razão.

Assim que aprendeu a olhar decidiu fazê-lo apenas numa direcção, em frente. Tudo o resto era intuído, imaginado, conhecia-o sem precisar de o ver com os seus olhos de olhar em frente. O fora, o outro, o diverso, eram para ela um mundo provável e rumoroso feito de coisas e pessoas estrangeiras, habitantes fantasmas de uma realidade que não era a sua. O seu mundo estava ali, em frente aos olhos claros, os seus olhos franzidos, focados numa distância que não se com um olhar.

Para a menina tudo era simples e recto, linear. Uma variável de partida, outra de chegada e um declive pessoal, não existia mais nada. Os que cruzavam a sua estrada eram para ela pequenos pontos, a intersecção de uma curva (a curva de uma vida feita de caprichos) e a sua recta. Os rios não seguem a direito porque estão condicionados por montes e vales que não sabem ignorar, mas a menina furava os montes e fazia pontes nos vales que não via, que para ela não existiam.

A distância mais curta entre dois pontos é uma enorme vontade. Uma vontade sem distracções, uma vontade que não dança, que canta sempre a mesma música dos dias. O resto é espuma e tempo perdido, um mar parado que se agita sem razões. A menina gostava da terra firme onde os pés não escorregam, onde o passado fica para trás, marcado pelas pegadas.

O amor aconteceu duas vezes à menina, dois amores fugazes, amores de percurso. A primeira vez que se apaixonou foi por uma outra recta que condescendeu em ser-lhe paralela, um amor a uma distância pequena, mas não despiciente. A distância entre duas mãos que quase se tocam, dia após dia, quase, sempre quase. Da outra vez ela não o chamou amor, ninguém o chamou, foi um acontecimento que não aconteceu. Uma sinusoidal cruzou-a diversas vezes até que se tornou anarmónica, deixando atrás de si o traçado de um acidente.

A menina segue a estrada que deve seguir e não chora e não canta. Quem olha em frente não tem tempo para pensar muito. Uma variável de partida e outra de chegada, um traço direito, quase contínuo, quase. Os pontos brancos não lhe pertencem, são espaços e tempos de outros que um dia talvez os queiram preencher. As vontades dos outros são vontades de outros.


Bambina in Forma di Retta

La verità è che non era più una vera bambina. O meglio, sì, era una vera bambina. Era rimasta così quando tutti gli altri non sapevano più cosa fossero. Qualcuno avrà detto “lei è cosi com’è” e ha detto bene.

Dal momento in cui imparò a guardare, decise di farlo soltanto in una direzione, avanti. Tutto il resto lo intuiva, lo immaginava, lo conosceva senza doverlo vedere con i suoi occhi fatti per guardare in avanti. Il fuori, l’altro, il diverso erano per lei un probabile e rumoroso mondo fatto di cose e persone straniere, abitanti fantasmi di un mondo oltre, un mondo che non era il suo. Il suo mondo rimaneva li, davanti ai suoi occhi chiari, i suoi occhi stretti, focalizzati al di là di quanto si possa vedere con uno sguardo.

Per la bambina tutto era semplice e retto, lineare. Una variabile di partenza, un’altra di arrivo e una sua pendenza personale; non c’era nient’altro. Quelli che incrociavano la sua strada erano per lei piccoli punti, le intersezione tra una curva (la curva di una vita fatta di capricci) e la sua retta. I fiumi non vanno dritti perché sono costretti da monti e valli che non sanno ignorare, ma la bambina rompeva i monti e costruiva ponti sulle valli che non vedeva, che non erano per lei.

La distanza più corta tra due punti è una voglia immensa. Una voglia senza distrazione, una voglia che non balla, che canta sempre la stessa musica dei giorni. Il resto è schiuma e tempo perso, un mare fermo che si agita senza perché. Alla bambina piaceva la terra ferma dove i piedi non scivolano, dove il passato rimane dietro, segnato dalle impronte.

Per due volte l’amore accadde alla bambina, due amori veloci, amori di percorso. La prima volta che si innamorò fu per un’altra retta che acconsentì di esserle parallela, un amore a una distanza piccola, ma non trascurabile. La distanza tra due mani che quasi si toccano, giorno dopo giorno, quasi, sempre quasi.

L’altra volta lei non lo chiamò amore, nessuno lo chiamò, fu un avvenimento che non avvenne. Una sinusoide la intersecò diverse volte finché diventò anarmonica, lasciandosi dietro il tratteggio tipico di un incidente.

La bambina segue la strada che deve seguire e non piange e non canta. Chi guarda avanti non ha tempo per pensare troppo. Una variabile di partenza e un’altra di arrivo, una traccia dritta quasi continua, quasi. I punti bianchi non le appartengono, sono spazi e tempi di altri che un giorno potranno anche riempirli. La voglia degli altri è una voglia di altri.

14.9.09

Acordar um Dia XXXIII

Acordar um dia com uma erecção e nenhum desejo. Uma erecção inútil e vazia que se desfaz em lágrimas e em mais nada.

10.9.09

Procura-se

Pessoa de poucas falas e escassa presença.
Pessoa capaz de ser invocada por via de pouco: um reflexo azul, um cheiro a incenso, umas calças caídas no chão do quarto.
Pede-se o favor de responder com um nome e nada mais que um nome.

7.9.09

Mariana (Quarta e Última Parte)

A partir desse momento tudo mudou. Essa consciência do inevitável, da punição infalível, mudou a perspectiva e amainou exaltações. Estávamos juntos, para o melhor e para o pior, na vida (minha) e na morte (sua). Ela era como era e eu também assim, restava-nos baixar as cabeças e puxar o jugo. Talvez aprendêssemos a assobiar baixinho e a chorar como quem respira, sem pensar no gesto nem saber porquês.

Os tempos que se seguiram fizeram-se de compromissos. A voz da Mariana continuou estridente, mas tornou-se contida, quase serena. Começou também a cuidar a linguagem, evitando certas palavras e usando outras que me vai ouvindo. Deixou os lamentos e os protestos e passou a falar de coisas que sente, de memórias de infância e da aldeia que deixou um dia.

Por vezes dá-me conselhos e diz-me que está tudo bem, outras vezes fica ali calada a sorrir porque me pesa os cansaços. Em troca eu tento enriquecer-lhe os sonhos. Leio histórias românticas que são do seu agrado e sigo a telenovela das nove. Comecei também a perguntar aos meus colegas coisas da vida deles, dos filhos, das mulheres e os filmes que têm visto, ah, os filmes. Vamos ao cinema duas vezes por semana, ao início era um filme para mim (sem beijos) e outro para ela (sem complicações), ultimamente começa a ser difícil distinguir.

A Mariana apresentou-se há exactamente dois anos, mais ou menos. Depois foi o que se viu. Acabámos por nos tornar numa espécie de casal quase vulgar e quase feliz. Como tantos, não todos. Talvez gostemos mesmo um do outro, talvez tenhamos descoberto um tesão impossível e assim inesgotável. Talvez sejamos uma simbiose necessária de vida e morte, dia e noite, ser e não ser.

Se eu já pensei? Já. Um frasquinho de comprimidos às cores e a janela aberta para o gato procurar outra casa. Partiríamos os dois para mundos que não conhecemos. Pensei nisso várias vezes, mas tenho dúvidas. Desconfio do além e não me quero pôr nas mãos de Um Qualquer. E depois quem me garante que eu a encontro, que ela existe fora de mim? Que outro mundo me poderia servir se eu nunca cheguei a perceber este, assim finito e cheio de homens? Enquanto penso nisto o gato olha para mim. Ele que também sabe coisas.

5.9.09

Mariana (Terceira Parte)

Que diz um homem às cinco da manhã deitado na cama receando adormecer? Um homem que treme com medo de uma ex-prostituta ex-viva sem papas na língua e com deficiências gramaticais?

Um homem faz perguntas, perguntas que são só uma: Porquê a mim? De todos os clientes da Mariana Marlene, por que fora eu o escolhido para cumprir a punição? Que poderia justificar uma tal arbitrariedade?

Sempre fui um homem discreto, incapaz de incomodar Deus com ofensas ou rogos, e Ele respondera da mesma forma, sem nenhum milagre ou praga a assinalar, mas agora isto... Perguntei bem alto uma e outra vez, porquê eu? Não me dirigia ao Altíssimo mas sim à Mariana, se me ouvia em sonhos talvez se dignasse a responder numa próxima oportunidade. Por essa altura eu estava certo que haveria outras oportunidades.

A resposta chegou à tarde, durante uma sesta no gabinete. Incapaz de aguentar o corpo entreguei-o por breves instantes ao cadeirão em pele. Foi quanto bastou. “É que o Mário não sabe... posso chamar-lhe só Mário? Mesmo que não pudesse, eu chamo-lhe o que quiser e mais nada, olarilas. O que o Mário não sabe e nem adivinha é que foi o meu primeiro cliente, ah pois foi, o primeirinho... eu tinha vindo da aldeia, e nem sabia ao que vinha, foi o senhor Antunes é que tratou de tudo... um sabidão, um safardolas que conhecia mais desta vida do que o padre da missa, olarilas. Eu acabadinha de chegar da aldeia e ele a dar-me as roupitas de andar na vida. Tens de ir ver um senhor, fazes assim e assado e boca calada que ninguém te paga para andares a tocar corneta, ouviste minha linda? E eu lá fui e assim foi. O meu primeiro cliente... e olhe, antes o senhor que outro, que depois de si foram muitos e quase todos piores e mais porcos. Ao menos o senhor era de respeito, não sei se é da picha curta ou quê, mas pelo menos era de respeito...”

Fiquei esclarecido. Fiquei também desesperado e mortificado, mas esclarecido. Um gesto de fraqueza irreflectido, um número de telefone marcado e eis-me com a existência entrelaçada a uma mulher que eu tinha descartado juntamente com o tesão. São sempre os tesões a tramar as vidas dos homens. Uma pessoa estuda e trabalha e acredita em ideias e afinal a vida vai guiada por um pedaço de carne que não conhece a razão nem vontades que não são as suas.

(Continua)

4.9.09

Mariana (Segunda Parte)

Mesmo os sonhos mais acerbos acabam por ceder à realidade, ao sol, aos sons da manhã que entram desfocados pelos estores. Sim, é bem verdade. Não é verdade?

O duche lavou-me o suor fermentado no corpo e o café fez o mesmo a outros fermentos. Vesti-me rapidamente e entrei na rua como quem foge.


A manhã foi de uma banalidade irrepreensível e por alturas do almoço fui capaz de concentrar as angústias numa salada russa altamente suspeita. Foi um dia tranquilo e foi assim até ser tarde. Nunca antes me tinha apercebido das possibilidades felizes e purificadoras escondidas no tédio das aulas e das conversas. Caros colegas, caros alunos, moei-me as horas como quiserdes mas deixai-me a noite para sacudir migalhas.

Voltei para casa carregando um cansaço feliz. Feliz ou idiota, sinónimos de fim de tarde. no apartamento arrisquei o vagar. Meia hora de leituras (deveres e direitos dos sacerdotes na sociedade ateniense), uma pizza congelada, descongelada e engolida e um filme antigo sem surpresas nem desvios. Depois fui dormir, ousadamente fui dormir. Como se o sonho da noite anterior mais não fosse do que um sonho. E aqui fica intuída uma conjunção adversativa, a gosto...

Assim que os olhos se fecharam por dentro, apareceu novamente a abantesma. Meio fantasma, meio diabo, toda pânico e ranger de dentes. Não estava contente o animal... Subitamente após o nosso último encontro caíra num sono profundo do qual acabara de despertar. Também ela tinha sonhado muito, e que haveria de ter sonhado? (a pergunta era sua, não minha) jardins? Mares? Um homem forte e silencioso com medo de relações sérias? Nada disso! (a surpresa era sua, não minha). Tinha sonhado comigo. Não apenas comigo, Mário abstracto e arquétipo (palavras minhas, não suas) mas com toda a minha jornada, nos seus pormenores ínfimos e segundos fugazes. Tinha seguido as aulas, as conversas com os colegas e passado longas horas a ouvir as dúvidas frágeis dos alunos. Não estava contente o animal.

Eram muitas as suas queixas: a voz pedante que lhe dava ganas de um novo suicídio; os colegas idiotas que falam de livros, de filosofia e dos cus das alunas; o filme a preto e branco sem legendas nem beijos, e mesmo a porcaria da salada russa, que lhe tinha deixado um gosto a maionese estragada durante toda a tarde (a minha tarde). Seguiram-se mais berros, lamúrias e resmungos vários. Assim foi até eu me livrar do algoz graças a certas pressões da bexiga, abençoada seja e muitas vezes louvada. Eram cinco da manhã e foi o fim do meu sono. O medo e o amor-próprio mantiveram-me acordado e a falar sozinho enquanto esperava o sol.


(Continua)

 
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