Praia da Barra,
29 de Dezembro 2011
Saio de casa
para o vento, é demasiado cedo para que alguma coisa faça sentido. Parece-me
estúpida a demanda, estúpido eu e a manhã fria. Pondero voltar para a cama e
mandar a minha ideia às urtigas, mas não volto, não mando, e vou ver o mar
antes de partir.
Entro na
auto-estrada e procuro o CD que gravei com músicas mais ou menos natalícias -
cantos tradicionais do Mississipi, de Gales e de Itália gravados por Alan Lomax
nos anos cinquenta, gregorianos de uns monges quaisquer, vilancetes espanhóis
(que descubro serem insuportáveis), umas coisas estranhas da Meredith Monk e
algumas cantatas de Bach. As vozes, distintas e antigas, sucedem-se em shuffle como se circulasse num aeroporto
do séc. XVIII, e o dia vai-se compondo.
Paro numa
estação de serviço e vou até à cafetaria, não me apetece nada, apenas parar
numa estação de serviço. Uma excursão de minhotos, emigrantes de férias, dois
vendedores de fato que discutem numa mesa apontando as canetas um ao outro, um
casal jovem e bem-parecido ruminando em silêncio uma noite mal resolvida. É
importante parar nas estações de serviço.
Sigo para norte,
passo o Porto, Braga e Valença. Decido almoçar junto à costa galega, de onde tenho
memórias de bom marisco e de um vinho sofrível. Saio da auto-estrada e vou
atravessando povoações complicadas, sem grande ordenamento, informações ou
sentido. Há muitos carros nas estradas e poucas pessoas na rua. Chego
finalmente ao mar e estaciono em frente a uma baía cinzenta.
Vou caminhando à
procura de um restaurante, estão quase todos vazios e quase todos anunciam a
triste merluza que não me apetece
comer. É tarde, chove e eu tenho fome. Desisto por um desses restaurantes
adentro e consigo que me sirvam polvo e um copo de vinho à pressão.
Chego ao
mosteiro ao final da tarde e sou recebido por um monge que sorri muito e fala
pouco. “Chamo-me Alfonso”, aperta-me a mão e faz sinal para que o siga até à
hospedaria. Passamos por dois claustros, subimos dois andares e Alfonso abre a
porta do quarto e entrega-me a chave. Em cima da cómoda está uma folha de papel
com o horário das refeições, da eucaristia e das restantes orações (em horas
canónicas e civis) e meia dúzia de regras que devem ser respeitadas. “Está tudo
aí explicado”, e despede-se com um aceno.
Fico admirado
(desiludido?) com a modernidade do mobiliário e do sistema de aquecimento. Da
janela um jardim rústico, de carvalhos, arbustos e flores silvestres. Retiro
alguns livros da mochila, deito-me na cama e tento recordar o que me levou até
ali, não as circunstâncias biográficas (previsíveis e banais), mas a dúvida e a
insegurança que delas nasceram. Adormeço e acordo no escuro, a alguns minutos
da hora de jantar.
Há dois
refeitórios diferentes, o dos monges, que não vemos mas cujo silêncio se faz
sentir, e o dos hóspedes, onde estou eu, um andaluz de cinquenta anos e a filha
adolescente e duas senhoras portuguesas que me cumprimentam com sotaque de
Cascais e sorrisos abertos. Fala-se pouco ali também, o Andaluz e a filha
praticam uma solenidade Bergmaniana, incómoda. As senhoras fazem-me algumas
perguntas e explicam-me que estão ali por causa do Pedro, o monge português que
conhecem desde pequeno.
Lavamos a louça,
despedimo-nos e regressamos aos quartos.
Antes de me
deitar desço para fumar um cigarro num dos claustros, um monge aproxima-se e
mete conversa, chama-se Philippe e, meio em francês, meio em espanhol, falamos
do frio, da noite e de Deus.
Oseira, Galiza,
30 de Dezembro de 2011
Acordo sem o sol.
Lavo-me rapidamente e desço estremunhado para assistir às laudes matutinas e à eucaristia. Louvemos, pois.
A capela está na
penumbra e em silêncio absoluto, de vez em quando uma inspiração profunda, o pigarrear
de um monge ou de um dos hóspedes. Ficamos assim por algum tempo, sente-se o
cheiro das velas e um frio de pedras adormecidas. Quando me presto a entender
alguma coisa, o órgão solta dois acordes intensos que dão início ao hino.
Levantamo-nos solenes enquanto o organista salta no banco, os braços agitam-se
frenéticos enquanto o corpo dança num tempo esquisito. Canta-se.
Subo ao quarto
após o pequeno-almoço, pego num livro de poemas e saio protegido por um gorro e
luvas de lã. A erva alta tão húmida que em poucos passos fico com as botas encharcadas.
Atravesso o jardim e passo pela horta onde dois monges trabalham. Há também um
pequeno pomar, um curral com meia dúzia de vacas, um galinheiro e dois cavalos
que pastam.
Caminho pelo
bosque por boa parte da manhã. Quando encontro uma árvore caída ou uma rocha
sento-me e leio alguns versos: Termos das
árvores/A incomparável paciência de procurar o alto. Deixei o relógio e o
telemóvel no mosteiro e guio-me pelo tocar do sino que chega modulado por
pássaros e vento. Deixo passar o ofício de terças
e vou inventando pequenas orações que respondem aos poemas ou os contrariam.
Passo a tarde a
ler e a escrever, pelo meio assisto à nona
e a vésperas cantando os salmos em
voz baixa. Da janela do quarto observo um monge que varre as folhas mortas e
imagino-me naquilo, entregue aos rituais e a certezas pontuais, quando recebo
no telemóvel uma mensagem cuidadosamente obscena de uma amiga de outras horas.
Fumo à janela aberta e espero pelo jantar.
Oseira, Galiza,
31 de Dezembro de 2011
Admiro os
lugares e os dias em que as manhãs fazem sentido. Como aqui, agora. Se teve
Deus tanto trabalho a erguer o sol, não fazemos nós homens mais do que a nossa
obrigação. Reza-se, canta-se, come-se e trabalha-se. Trabalham, porque eu
arrumo as coisas na mochila e preparo-me para ir embora. Desacompanhado de Deus
e de qualquer certeza, mas com as perguntas mais afinadas, buriladas pelo frio
e pelo silêncio.
Ao caminhar pela
galeria vem um monge ter comigo - Àngel, catalão e pintor. Pergunta-me se gosto
de arte e propõe-me mostrar os quadros que fez depois de chegar ao convento.
Digo-lhe que sim e sigo-lhe os passos excitados até uma outra galeria onde os
quadros estão pendurados. Vai-me explicando as composições e eu tento não
ouvir, porque são belas e estranhas, e dispensam palavras. Colagens com tecidos
grosseiros e puídos, a tela furada por fios de arame e manchada por pigmentos
vermelhos e ocres. Pergunto-me se o seu Deus lhe habita as obras ou se aquele é
um território franco, onde o sangue ferve de vontades menos santas. Agradeço-lhe
e abraçamo-nos. Até à próxima, irmão Àngel.
Entro no carro,
acendo o motor e observo o mosteiro por alguns minutos. Quero levar uma imagem
que não se apague, uma ideia, uma qualquer coisa que sinta. Leio um último
poema: Guarda a manhã/Tudo o mais se pode
tresmalhar. Ligo o auto-rádio e parto.
Tenho duas horas
para chegar a Vila Real e juntar-me a um grupo de amigos e ao porco que vamos
matar. A estrada está húmida e viscosa como a pele de uma salamandra. Faço as
curvas lentamente e aumento o volume do auto-rádio para que Bach me possa
velar. Ao chegar ao final de uma recta surge um carro descontrolado em sentido
contrário, desvio-me dele e vejo-o sair da estrada e embater numa árvore. Paro
e aproximo-me sem saber o que fazer, não sei se o número de emergência em
Espanha é o mesmo que em Portugal, pensando bem não me lembro qual é o número
em Portugal, 115? 118, 112? Abre-se uma porta do carro e sai um homem com as
pernas bambas e a cabeça a sangrar, confuso, mas inteiro. Entretanto parou já outro
carro de onde sai uma senhora com o telemóvel na mão, fala em galego e pede uma
ambulância.
Fico por ali
mais uns minutos, ofereço água ao homem e monto o triângulo a uma distância vagamente
regulamentar (são 30 ou 100 metros?), quando chega a ambulância despeço-me e
volto à estrada.
Faço o resto do
caminho em silêncio, sem música, sem um pensamento que se possa aproveitar.
Observo as árvores e as casas de pedra que vão aparecendo e sumindo por entre a
névoa. Tenho as ideias partidas como se fossem versos de um poema que já não
sei dizer de cor.
Entro na
auto-estrada e paro na primeira estação de serviço. É importante parar nas
estações de serviço.
(Diário Publicado no Jornal de Letras de 5 de Fevereiro de 2014)
Olá, na revista nº 4 da Bertrand, encontrei o seu conto "maquinista", já há alguns meses, que me impressionou e guardei.
ResponderEliminarHoje publiquei-o na minha página, espero que não se importe.
Caso seja contra a sua vontade, diga-me por favor, que eu retiro.
Gosto do que escreve.