26.8.11

O Avô Pintinhas

O meu avô é uma gota de passado pendurada na parede da sala. As poucas fotografias que resistiram dizem pouco, uma cara redonda, um corpo maciço e um sorriso de brejeirices com o cigarro ao canto da boca. Uma mulher escura de cabelos escuros dá-lhe o braço numa delas, estão num salão, talvez um clube recreativo ou um baile particular. A minha avó não se vê em nenhum lado.
Chamava-se José Silvério mas todos lhe chamavam Pintinhas. Tinha dois sinais na asa esquerda do nariz e morreu do fígado antes que eu aprendesse a falar. Não fez diferença, porque só agora me lembro das perguntas que lhe queria fazer.
A guitarra tem um nome, chama-se Mercedes e está pendurada por um cordel grosso e encardido, mais escuro ao centro, onde assentava o pescoço do meu avô. É do meu pai que ouço as histórias, a minha mãe guarda silêncios como vergonhas, já lá está, era um homem difícil e muito doido, diz-me ela. O avô Pintinhas não era de andar por casa e vive ainda pelas ruas, mais do que por cá.
Conheço bem os passos do meu avô, as ladeiras e os becos onde se encostava para dormir, os homens que lhe ampararam quedas e humores, “este é neto do Pintinhas” dizem uns para os outros, depois riem e dão-me palmadas nos ombros e oferecem copos de aguardente. Eu recuso e riem ainda mais, “Deixa lá, que só de herança hás-de ter que não te falte.” Na tasca do Artur uma outra foto assinada, Rio de Janeiro, 1954, dois anos antes de a minha mãe nascer.
Dizem-me que os dedos dançavam mais do que tocavam, corriam pelo pescoço da Mercedes, acima e abaixo, em festas loucas que trocavam os olhos à gente, meia dose de homem cambado pelos cantos, mas quando punha a guitarra ao pescoço, ai rapazes… era de valor. As mulheres então ficavam tontas naquilo, adivinhavam o que se escondia e era escolhê-las porque todas o queriam, ao Pintinhas não faltava avio.
A minha avó era cantadeira de soirées, de uma família feita com os dinheiros do bacalhau e mercadorias finas, uma venda bem arranjada onde agora dançam mulheres a mostrar vergonhas, parece pulha do meu avô. A menina tinha o gosto da música e cantava certa, com mais recato do que sentimento, uma voz afinada por outro tempo. Chamam-lhe coitada mas eu imagino-a feliz, menina embalada pela guitarra endiabrada do Pintinhas, quem pudera ter-se por entre tanto dedilhar?
Dizem que a enganou, como se fosse um mal, como se não procurássemos todos o engano que nos falta. O cigarro ao canto da boca, uma mão no bolso e a outra a segurar o queixo, um homem cheio de dedos.
Vou por aí e às vezes perco-me, assento algumas linhas num caderno e acabo sempre por encontrá-lo, anda por aí o diabo. Os registos que ficaram estão gravados em gente como ele, homens esconsos às cavalitas do passado, as vozes tremidas cheias de certeza, o teu avô, menino, cantava assim. O meu avô é eco nesta gente, e eu também sou, sombra de sombras, Mercedes das suas mãos. As mesmas paredes, o mesmo branco agreste da cal queimada nos olhos de tanto tempo. O meu avô, menino, vivia aqui.
Um dia veio um americano e perguntou por ele, levou-o para um estúdio da rádio e tocaram juntos. O americano elogiou-o com palavras que ele não entendia, convidou-o a ir com ele, para a América, “big success” dizia ele, o Pintinhas ria e encolhia-se como podia, América? E a minha Lurdes? No, América no…. E gravaram mais uma música. Foram as fitas para longe com palavras escritas à mão, “Danças no Peito”, “Amores, amores”. Foram as fitas e ficou ele, agarrado à aguardente, à Mercedes, e à sua Lurdes, avô que chegue para ruas tão estreitas.
E o Brasil, avô? E as mulheres, avô? E a Carmen dos cabelos pretos? A voz veio depois, as palavras depois. Um homem já ido, o chapéu tombado e um cigarro encostado à curva do riso. A guitarra já sem cordas, o negro descascado por entre os trastes onde os dedos inventaram sons. Agora pendurada, o avô pendurado com a loucura de ser ele, enganador, danceteiro, homens às voltas e agora não.
Os teus Brazis, avô, as tuas mulheres escuras, um copo de aguardente, homem torto pelo torto da vida, era assim, avô, serve esta voz? É assim que se fala? A Mercedes, avô, gota certa que escorre por entre nós, o som que és e nós não somos. As paredes lembram-te, cantam-te ou calam-te consoante a hora, como eu e nós, avô. Andas por aqui às pingas, a chover-nos em cima, como o tempo, avô.

(Texto escrito para a folha de sala da iniciativa "Fado no Museu" da Câmara Municipal do Porto)

1 comentário:

  1. Como sempre um belo texto. Digno dos dedos do avô. Que nome deste ao teu teclado?
    um abraço.

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