O meu avô é uma gota de passado pendurada na parede da sala. As poucas fotografias que resistiram dizem pouco, uma cara redonda, um corpo maciço e um sorriso de brejeirices com o cigarro ao canto da boca. Uma mulher escura de cabelos escuros dá-lhe o braço numa delas, estão num salão, talvez um clube recreativo ou um baile particular. A minha avó não se vê em nenhum lado.
Chamava-se José Silvério mas todos lhe chamavam Pintinhas. Tinha dois sinais na asa esquerda do nariz e morreu do fígado antes que eu aprendesse a falar. Não fez diferença, porque só agora me lembro das perguntas que lhe queria fazer.
A guitarra tem um nome, chama-se Mercedes e está pendurada por um cordel grosso e encardido, mais escuro ao centro, onde assentava o pescoço do meu avô. É do meu pai que ouço as histórias, a minha mãe guarda silêncios como vergonhas, já lá está, era um homem difícil e muito doido, diz-me ela. O avô Pintinhas não era de andar por casa e vive ainda pelas ruas, mais do que por cá.
Conheço bem os passos do meu avô, as ladeiras e os becos onde se encostava para dormir, os homens que lhe ampararam quedas e humores, “este é neto do Pintinhas” dizem uns para os outros, depois riem e dão-me palmadas nos ombros e oferecem copos de aguardente. Eu recuso e riem ainda mais, “Deixa lá, que só de herança hás-de ter que não te falte.” Na tasca do Artur uma outra foto assinada, Rio de Janeiro, 1954, dois anos antes de a minha mãe nascer.
Dizem-me que os dedos dançavam mais do que tocavam, corriam pelo pescoço da Mercedes, acima e abaixo, em festas loucas que trocavam os olhos à gente, meia dose de homem cambado pelos cantos, mas quando punha a guitarra ao pescoço, ai rapazes… era de valor. As mulheres então ficavam tontas naquilo, adivinhavam o que se escondia e era escolhê-las porque todas o queriam, ao Pintinhas não faltava avio.
A minha avó era cantadeira de soirées, de uma família feita com os dinheiros do bacalhau e mercadorias finas, uma venda bem arranjada onde agora dançam mulheres a mostrar vergonhas, parece pulha do meu avô. A menina tinha o gosto da música e cantava certa, com mais recato do que sentimento, uma voz afinada por outro tempo. Chamam-lhe coitada mas eu imagino-a feliz, menina embalada pela guitarra endiabrada do Pintinhas, quem pudera ter-se por entre tanto dedilhar?
Dizem que a enganou, como se fosse um mal, como se não procurássemos todos o engano que nos falta. O cigarro ao canto da boca, uma mão no bolso e a outra a segurar o queixo, um homem cheio de dedos.
Vou por aí e às vezes perco-me, assento algumas linhas num caderno e acabo sempre por encontrá-lo, anda por aí o diabo. Os registos que ficaram estão gravados em gente como ele, homens esconsos às cavalitas do passado, as vozes tremidas cheias de certeza, o teu avô, menino, cantava assim. O meu avô é eco nesta gente, e eu também sou, sombra de sombras, Mercedes das suas mãos. As mesmas paredes, o mesmo branco agreste da cal queimada nos olhos de tanto tempo. O meu avô, menino, vivia aqui.
Um dia veio um americano e perguntou por ele, levou-o para um estúdio da rádio e tocaram juntos. O americano elogiou-o com palavras que ele não entendia, convidou-o a ir com ele, para a América, “big success” dizia ele, o Pintinhas ria e encolhia-se como podia, América? E a minha Lurdes? No, América no…. E gravaram mais uma música. Foram as fitas para longe com palavras escritas à mão, “Danças no Peito”, “Amores, amores”. Foram as fitas e ficou ele, agarrado à aguardente, à Mercedes, e à sua Lurdes, avô que chegue para ruas tão estreitas.
E o Brasil, avô? E as mulheres, avô? E a Carmen dos cabelos pretos? A voz veio depois, as palavras depois. Um homem já ido, o chapéu tombado e um cigarro encostado à curva do riso. A guitarra já sem cordas, o negro descascado por entre os trastes onde os dedos inventaram sons. Agora pendurada, o avô pendurado com a loucura de ser ele, enganador, danceteiro, homens às voltas e agora não.
Os teus Brazis, avô, as tuas mulheres escuras, um copo de aguardente, homem torto pelo torto da vida, era assim, avô, serve esta voz? É assim que se fala? A Mercedes, avô, gota certa que escorre por entre nós, o som que és e nós não somos. As paredes lembram-te, cantam-te ou calam-te consoante a hora, como eu e nós, avô. Andas por aqui às pingas, a chover-nos em cima, como o tempo, avô.
(Texto escrito para a folha de sala da iniciativa "Fado no Museu" da Câmara Municipal do Porto)
Como sempre um belo texto. Digno dos dedos do avô. Que nome deste ao teu teclado?
ResponderEliminarum abraço.