Nova Iorque
– São quatro segundos, caro amigo, quatro segundos de aflição que não dão para um pai‑nosso. O amigo experimente, pai nosso que estás no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no PAM!, quatro segundos e o corpo despedaçado contra o cimento. Se quiser continuar a trabalhar aqui, invente uma oração, pense bem no que há‑de pedir ao altíssimo, mas que seja em menos de quatro segundos.
Dois homens pendurados por arneses a oitenta metros de altura. Os que trabalham dentro chamam‑lhes pardais com uma ironia desnecessária. Quarenta e oito horas semanais de equilibrismo pagas a quatro dólares, um bom emprego para quem acaba de chegar à cidade. A fome mata‑se muitas vezes com números de circo, ser equilibrista ou palhaço é só uma questão de oportunidade.
– Quando o mundo foi feito, os homens foram postos na terra de pés assentes e medo das alturas. Os homens não são do alto, como os pássaros e os anjos, a vertigem foi‑nos dada pela natureza para que não o esquecêssemos. Os homens que sobem demasiado alto são puxados para baixo pelo diabo, para baixo de tudo, para o inferno que procuram. A força da terra é força do diabo a chamar gente.
Karl tenta não ouvir o colega, concentra‑se na janela e no rodo que faz deslizar com precisão. Este é o primeiro dia de trabalho e ensaia um desvelo que não lhe é comum. Por entre os movimentos do braço e o chiar da borracha contra o vidro, há palavras que lhe chegam e ficam às voltas na cabeça. Céu, cimento, diabo, inferno. Karl nunca esteve tão longe do chão em toda a vida, pouca gente esteve. As montanhas do seu país são uma coisa diferente, altas, sim, mas vão subindo devagar. Esta parede é demasiado vertical, como o degrau infinito de uma escada absurda, um degrau que é fácil descer.
– Eu não hei‑de cair enquanto o mundo não se virar. Não há diabo que chegue ao santíssimo. Há quase um ano que trabalho nisto e deus nunca me deixou cair, um homem deve precaver‑se e foi o que fiz. O pastor deu‑me na mão uma pena de anjo, uma pena às cores de um anjo que o foi ver, e eu trago‑a cosida ao peito. Esta pena é de puxar para deus. «Cose‑a ao peito e nada te pode deitar abaixo, o coração há‑de puxar‑te sempre para cima enquanto a trouxeres contigo.» Foi o que me disse o pastor antes que eu aceitasse este trabalho. Uma parte do ordenado vai para a igreja e mais que fosse, o favor de deus não tem preço e até os pardais podem cair sem penas de puxar para cima.
Tremem as pernas a Karl de frio ou medo, a esta altitude não há diferença. O vento anda com eles de manhã à noite, como um cão vadio que não tem para onde ir e se mete pelas pernas de quem trabalha. Karl dá por si a inventar orações, é um exercício difícil, reduzir a algumas frases tudo o que se quer pedir ao criador. Por fim decide‑se e repete para si mesmo «Perdoa‑me senhor, perdoa‑me senhor, perdoa‑me senhor...», a fórmula é simples e tem a vantagem de poder ser usada também em quedas pequenas.
Auspicioso, de facto. Não desilude. (Já o esperava.) Cá aguardo a possibilidade de ler o resto. É assim uma escrita a atirar para a poesia. Muito melodiosa e bela.
ResponderEliminarTambém eu aguardo a possibilidade de ler mais.
ResponderEliminarSabe se haverá possibilidade de ser vendido no Brasil? Espero que sim.
Pode ser que sim, Angela, sei que já foram feitos contactos nesse sentido, não sei em que pé estão. Um abraço,
ResponderEliminarNuno