Há milhões de pessoas viciadas no jogo. Slots, póquer, dados, roleta... jogos. Milhões de esperanças que se entregam diariamente a dinâmicas esconsas. “Às vezes ganha-se”, é esse o mantra maravilhoso que vai roendo devagar tantos fiéis da ventura. Pela minha parte sempre fui um céptico, cauteloso, previdente, cobarde mesmo. Mas o Marcelo tirou o “às vezes” da frase e as perspectivas mudaram substancialmente. Ganhávamos, sempre. Jogo após jogo, com maior ou menor facilidade, com sorte e sem ela. Nenhum adversário era para nós intransponível porque aprendemos a conhecê-los. Não há ninguém que não tenha falhas, debilidades, calcanhares do outro. Uma lição importante.
Durante algumas semanas corremos um número improvável de salas escondidas, casinos ilegais e torneios oficiais. Aperfeiçoámos o número e ninguém se ficava a rir. Só nós ríamos, muito e com vontade. Acumulámos uma soma considerável, o meu salário muitas vezes multiplicado e por muitos anos, uma mala de viagem cheia de notas grandes. Tudo aquilo me parecia um longo sonho, com muito fumo e gente embrulhados nas minhas noites.
Durante algumas semanas corremos um número improvável de salas escondidas, casinos ilegais e torneios oficiais. Aperfeiçoámos o número e ninguém se ficava a rir. Só nós ríamos, muito e com vontade. Acumulámos uma soma considerável, o meu salário muitas vezes multiplicado e por muitos anos, uma mala de viagem cheia de notas grandes. Tudo aquilo me parecia um longo sonho, com muito fumo e gente embrulhados nas minhas noites.
O Marcelo estava diferente, talvez tivesse voltado a ser o que era antes de eu o conhecer. Incitava-me a luxos a que eu não estava habituado, fazia-me comprar lagostas, caviar, champanhe, iguarias de filmes que eu não costumava ver. Eu fazia-lhe a vontade e nem tinha grandes razões de queixa, uma pessoa habitua-se a tudo, mesmo ao caviar. Uma noite, enquanto digeríamos um jantar de muitos euros, o Marcelo ficou sério e perguntou-me por mim. “Então e agora? Tens dinheiro, muito dinheiro, viste um mundo que não conhecias e aprendeste a praticar o amor-próprio. O que queres vais fazer com isso?”. Parecia uma pergunta simples e eu tentei responder várias vezes até perceber que me faltavam as palavras. Ó raios, que iria eu fazer com tudo aquilo?
“Já vi que não ligas às coisas que a mim me dão prazer. Comes pouco, não sabes beber e vestes qualquer coisa que tenha buracos para enfiar os braços, cada um é como é. Mas diz-me uma coisa de que gostasses, um desejo, um capricho...” Eu calava-me e vasculhava o cérebro à procura de uma vontade, de algum querer. Uma única coisa me veio à ideia e algo em mim o deve ter revelado. “Ainda pensas na miúda da tabacaria não é? Nunca lhe falaste a jeito, mas ainda pensas nela... Pois é isso que tens de fazer, amanhã de manhã compras o jornal e não sais de lá sem a convidar para jantar. Usa a desculpa que quiseres, diz-lhe que ganhaste um vale para dois num concurso da rádio, qualquer coisa, pelo que eu vi não me parece que ela precise de grandes explicações”.
Não sei como é com outros amigos imaginários, mas o Marcelo tem um modo de dizer as palavras e fazê-las definitivas, fazê-las futuro. Era o que eu deveria fazer, Marcelo dixit. Faça-se então o que deve ser feito.
(Continua, em breve)
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