30.6.09

O Marcelo (Décima Quinta Parte)

Há milhões de pessoas viciadas no jogo. Slots, póquer, dados, roleta... jogos. Milhões de esperanças que se entregam diariamente a dinâmicas esconsas. “Às vezes ganha-se”, é esse o mantra maravilhoso que vai roendo devagar tantos fiéis da ventura. Pela minha parte sempre fui um céptico, cauteloso, previdente, cobarde mesmo. Mas o Marcelo tirou o “às vezes” da frase e as perspectivas mudaram substancialmente. Ganhávamos, sempre. Jogo após jogo, com maior ou menor facilidade, com sorte e sem ela. Nenhum adversário era para nós intransponível porque aprendemos a conhecê-los. Não há ninguém que não tenha falhas, debilidades, calcanhares do outro. Uma lição importante.

Durante algumas semanas corremos um número improvável de salas escondidas, casinos ilegais e torneios oficiais. Aperfeiçoámos o número e ninguém se ficava a rir. Só nós ríamos, muito e com vontade. Acumulámos uma soma considerável, o meu salário muitas vezes multiplicado e por muitos anos, uma mala de viagem cheia de notas grandes. Tudo aquilo me parecia um longo sonho, com muito fumo e gente embrulhados nas minhas noites.

O Marcelo estava diferente, talvez tivesse voltado a ser o que era antes de eu o conhecer. Incitava-me a luxos a que eu não estava habituado, fazia-me comprar lagostas, caviar, champanhe, iguarias de filmes que eu não costumava ver. Eu fazia-lhe a vontade e nem tinha grandes razões de queixa, uma pessoa habitua-se a tudo, mesmo ao caviar. Uma noite, enquanto digeríamos um jantar de muitos euros, o Marcelo ficou sério e perguntou-me por mim. “Então e agora? Tens dinheiro, muito dinheiro, viste um mundo que não conhecias e aprendeste a praticar o amor-próprio. O que queres vais fazer com isso?”. Parecia uma pergunta simples e eu tentei responder várias vezes até perceber que me faltavam as palavras. Ó raios, que iria eu fazer com tudo aquilo?

“Já vi que não ligas às coisas que a mim me dão prazer. Comes pouco, não sabes beber e vestes qualquer coisa que tenha buracos para enfiar os braços, cada um é como é. Mas diz-me uma coisa de que gostasses, um desejo, um capricho...” Eu calava-me e vasculhava o cérebro à procura de uma vontade, de algum querer. Uma única coisa me veio à ideia e algo em mim o deve ter revelado. “Ainda pensas na miúda da tabacaria não é? Nunca lhe falaste a jeito, mas ainda pensas nela... Pois é isso que tens de fazer, amanhã de manhã compras o jornal e não sais de lá sem a convidar para jantar. Usa a desculpa que quiseres, diz-lhe que ganhaste um vale para dois num concurso da rádio, qualquer coisa, pelo que eu vi não me parece que ela precise de grandes explicações”.
Não sei como é com outros amigos imaginários, mas o Marcelo tem um modo de dizer as palavras e fazê-las definitivas, fazê-las futuro. Era o que eu deveria fazer, Marcelo dixit. Faça-se então o que deve ser feito.
(Continua, em breve)

29.6.09

O Marcelo (Décima Quarta Parte)

Assim que o funcionário abandonou a mesa fez-se uma pausa. Eu aproveitei para ir à casa-de-banho onde pude falar com o Marcelo. Tudo corria bem até ao momento, nada de exaltações, mas tudo corria bem. Chegava agora o momento decisivo, hora de afinar astúcias. O velho e a mulher estavam demasiado distantes para que Marcelo desse conta dos dois, impunha-se uma escolha. Sabendo um dos jogos eliminávamos um concorrente, do outro havia que descobrir algum segredo, uma fraqueza que o tornasse vulnerável, conhecido. À mulher era impossível observá-la, (ainda mais para o Marcelo, dado como era a escorregar em terreno lúbrico) pelo que havia que mirar o velho, alguma coisa deveria esconder, afinal de contas era apenas um homem.
Recomeçámos. Caras lavadas, sorrisos amarelos e falsas simpatias repartidas pelos três. À primeira mão já Marcelo esperava de joelhos por detrás da mulher. Um três de ouros e um sete de paus, coisa pouca. Eu tinha um par de noves, o velho tinha o que tinha. Fosse Marcelo dotado do condão da ubiquidade e talvez o meu estômago não desse os coices que dava. Mas o condão não era e os coices sim.
Partiram as apostas, o meu jogo era superior ao da mulher e o ar seguro deve tê-la desencorajado. Fiquei eu e ele. As fichas foram aumentando na mesa e a última das cinco cartas a ser mostrada era um nove de copas, o que me deixava com um trio. Era uma combinação razoável, muitas vezes suficiente mas ainda assim frágil. Do Marcelo não recebi nenhum sinal e quando o velho subiu a parada eu receei. O sacana era de facto imperscrutável. Não fui a jogo, a prudência dar-nos-ia tempo para o estudar.

Na mão seguinte tentámos outra estratégia, a pedido do Marcelo retirei-me ao início e deixei-os jogar os dois. Ela tinha dois pares, o que lhe dava óptimas possibilidades, mas mais uma vez o velho apostava com energia. Foi por essa altura que a expressão do Marcelo mudou, tinha descoberto qualquer coisa. A mulher mostrou-se corajosa e foi a jogo. Voltaram-se as cartas, o velho tinha apenas um ás, fora um logro. O Marcelo veio até mim a saltar de felicidade e revelou-me a descoberta. “O raio do velho aperta os tomates quando faz bluff, é por isso que não ri nem muda de expressão, está concentrado nas dores lá de baixo”.
Declarámo-nos independentes da sorte e a partir daí arrecadámos tudo o que podia ser arrecadado. Primeiro os mais velhos e finalmente a senhora (o Marcelo fizera questão de a aguentar na mesa por um pouco mais). Coisa limpa, bonita de ver, o investimento multiplicado por cinco (aparte a comissão do homem grande) e nós com a alma aos pinotes, uma coisa bem feita sim senhora.

(Continua, em breve)

27.6.09

Marcelo (Trezena Parte)

Falemos agora do procedimento. A cada jogador são dadas duas cartas, duas. A melhor combinação entre estas e as cinco cartas dispostas na mesa dita o vencedor. Quem perde as fichas vai saindo do jogo, até ficar apenas um. Um vencedor que leva tudo e quatro perdedores que voltam a casa com as mãos vazias e o coração cheio de rancor. Se não rancor, pelo menos remorso, ou desalento, ou um projecto vago para mudar de vida.

O nosso plano assentava na invisibilidade do Marcelo, julgávamos ter aí uma vantagem considerável. O problema é que nos jogos sérios, envolvendo trocas monetárias, as cartas escondem-se bem, mesmo de gente invisível. Seria impossível a Marcelo ver o jogo de todos eles, talvez de um ou outro, mas não mais. Marcelo teria de aproveitar a fracção de segundo em que cada jogador vê o próprio jogo, a partir desse momento as cartas são deitadas de costas e assim ficam até ao final. Prevendo estas dificuldades havíamos decidido que durante um primeiro momento nos guiaríamos apenas pelo instinto e pela experiência de Marcelo, aguentando o jogo até individuar os melhores jogadores, a partir desse momento daríamos início ao ardil.

Começou-se a medo, devagar, com muitos olhares em volta e bambeares de corpo. Não houve apostas altas nem grandes perdas mas começaram a definir-se tendências. Os meus oponentes revelavam-se, as máscaras iam-se descolando com o suor e deixavam entrever nervos íntimos, tensos e vibrantes.
De todos, o mais curioso era sem dúvida o mestiço. A sua face espelhava as probabilidades de vencer. Não sorria e não se movia, era a sua fisionomia que se alterava. Quando o jogo era fraco parecia uma estátua de ébano mal talhada, com sombras improváveis despontando por toda a face. Se a sorte lhe era favorável, tornava-se numa criança redonda e luzidia. A própria cor da pele parecia ser sensível ao rumo do jogo. O funcionário era um homem inseguro, pernas a abanar em contínuo e mãos que não encontravam onde ficar por mais de cinco segundos. Nos momentos críticos que pediam decisões, aumentava a frequência das oscilações ao ponto de as transmitir aos copos de whisky. O número de ondas presentes na superfície do líquido dava uma medida exacta das inquietações do indivíduo.
O velho era absolutamente inexpressivo, ganhasse ou perdesse mantinha exactamente a mesma cara e só convocava os músculos para fumar ou beber. Nenhum ponto fraco à vista, um adversário difícil.
Finalmente a mulher... ninguém era capaz de olhar muito tempo para ela, não era possível. Bastava-lhe um movimento ligeiro, feito com uma qualquer parte do corpo, para desviar atenções e enxotar curiosidades. Os nossos olhares saltavam dos ombros para o decote, do decote para as pernas, das pernas para as mãos e no meio desse frenesim não havia modo de compreender o que quer que fosse. Prestidigitação segura e experimentada.

O jogo prosseguia e os elos fracos estavam agora a ponto de se romper. As fichas que lhes restavam não davam para fazer cantar ninguém e as ondulações no whisky faziam temer pelos cubos de gelo. Eu ia-me aguentando, sem grandes perdas ou ganhos mas colado ao pelotão da frente. Em breve seríamos três à mesa, passávamos ao segundo nível. O Marcelo piscou-me o olho e depois fez a dança dos momentos decisivos, demasiado parva para ser aqui descrita.
(Continua, em breve)

13.6.09

Coisas Acontecidas

Matou-a à machadada porque lhe faltava a coragem para matá-la de desgosto, de vazio e de tempo perdido.

9.6.09

Acordar um Dia XXVIII

Acordar um dia cedo ó i ó ai
com a alma assim-assim ó i ó ai
não há vento que me leve ó i ó ai
não há gente que me ature ó i ó ai.

(Estribilho dos dias neutros. O quarto e último "ó i ó ai" é manifestamante excessivo e adoidado, recomenda-se a sua omissão. A lacuna métrica pode ser colmatada com um prolongamento da segunda sílaba de "ature")

8.6.09

O Marcelo (Duodécima Parte)

Chegou a noite do primeiro embate. O jogo, o campo de batalha tantas vezes antecipado em delírios heróicos e vontades épicas. A hora era a hora. Saímos de casa calados um para o outro. As vestes sóbrias mas afirmativas, os modos duros e decididos. Eu era um miúdo em dia de faz-de-conta, mas não o disse, nem a mim nem ao Marcelo.

Fomos de Táxi até um bairro que quase poderia ser sério, mas não era. Tocámos à campainha e sai de lá uma voz que pergunta um monossílabo, eu respondi, “Boa noite para quem for”, a porta abriu-se. Subimos as escadas iluminadas por uma luz esforçada e antes de entrar trocámos olhares confiantes, aqui vai disto.

A sala tinha as dimensões exactas e a mesa ao fundo guardava uma cadeira vazia. Um braço esticado indicou-me o meu posto, algumas vozes rosnadas deram as boas noites e um homem grande explicou as regras do jogo. Todos conheciam as regras. O dinheiro foi trocado por fichas e acenderam-se os primeiros cigarros. Eu esperava charutos, mas foram cigarros.

Éramos cinco, não contando com o homem grande que ali fazia apenas de homem grande. Começando pela esquerda e no sentido dos ponteiros do relógio: Um senhor de uma certa idade, que era a da velhice, com muitas rugas na cara e olhos que tinham passado muitas taprobanas, os gestos calmos, os olhos não. Depois um tipo mestiço, feito de raças que nunca se deveriam ter cruzado, um riso que prefiro não lembrar. O seguinte era do género convencional, saído de um banco ou de uma repartição com a gravata lassa e a camisa suja no colarinho. Finalmente, uma mulher, dessas que podem ser qualquer coisa e cujo corpo comporta enormes vantagens estratégicas. Era loura, ou morena.

Uma ronda de olhares, alguns dedos estalados e estavam reunidas todas as condições, a partida ia começar.
 
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