A presença do Marcelo naquele ambiente mudava a perspectiva. Éramos ainda tudo o que sempre fomos, o que sempre somos, mas éramos também diversos. Tínhamo-nos transformado em caricaturas, como aquele miúdo gordo de uma série juvenil que aturamos porque é a fingir. Passa o genérico, muda-se de canal e todos imitam a voz do miúdo para rir e fazer rir. A manhã passou assim, com actores de segunda a fazerem deles mesmos e o meu carimbo a servir de aplauso. Muito bem Dona São, bravo Senhor Altino, que impertinente este Joãozinho...
À hora do almoço o meu amigo fictício (para quem?) despediu-se invocando o desejo de dar uma volta pela cidade. Acrescentou algumas palavras sobre lugares e gestos antigos e eu, embora não percebendo, acenei-lhe como se piscasse o olho. Comi sozinho e entretive-me a inventar histórias para ele, coisas de amores ou ódios antigos, dessas com que se fazem novelas e fados populares. Mas por alturas da mousse interrompi-me com um pensamento; se o Marcelo era o meu amigo imaginário então era porque o imaginava, e se eu o imaginava então talvez estas minhas histórias se pudessem concretizar e suceder-lhe na realidade. Fiquei assustado com a perspectiva de tanto poder e já nem acabei a mousse, fiz por pensar noutras coisas; futebol, seios, cães aos caracóis, as contas por pagar, outros seios, algo que não fosse os destinos do Marcelo. Uma coisa é invocar alguém, por descuido ou lá pelo que seja, outra diferente é manipulá-la com se ela fosse uma marioneta e nós esses senhores que manipulam as marionetas. Não estava certo, ele que fosse lá à vida dele mais os gestos e os lugares que para manipulações chegavam-me bem as apólices e as indemnizações.