12.8.13

Memórias de um Átomo

Dirão alguns que não és ser, que um átomo não pensa, não vive e é coisa que não lembra. Que sempre foste e sempre serás uma parte que mexe ao ser mexida, sem alma ou intenção. 
E, no entanto, esses que falam são eles também grãos de coisa tanta e maior. E o sistema solar, e a galáxia, e o cosmos, e Deus, que não existindo sempre teve imensas opiniões. Que dirão de nós tantos infinitos?
Vivemos importados com as nossas infâncias e mortes e somos afinal tão voantes, um segundo de estrelas, uma mancha na superfície de um planeta, que ora está e ora se some. E vamos compondo os nossos livros, e relatando as nossas memórias com a minúcia dos tontos – foi no dia vinte e quatro de Fevereiro de 1866, jamais o poderei esquecer. Mas esquecem todos os outros, e os próprios leitores chegam ao fim da página a bocejar-nos os dias inolvidáveis, espreitando o jantar se já está pronto, olhando para um relógio que mede o que já não nos pertence.

E tu estavas e estás e vais estar ainda muito mais. Tu viste reis e imperadores e os seus avós bárbaros, assististe à nossa queda das árvores, ao mar que nos pariu, à sorte que nos deu nome. E continuas aqui, parte muda do meu aparo, resignado com só ser sem nada perguntar. E se a indiferença ou a sageza te libertam das vaidades, cá estou eu, João da Ega, homem de todos os costados, petulante, vão e airado, pronto a trair-te a anonimidade eterna por uma glória que ninguém há-de recordar. 

(Texto publicado no Jornal de Letras de 29 de Julho, a proposta era a de imaginar os primeiros parágrafos do "Memórias de um Átomo", livro que o João da Ega dos "Maias" nunca chegou a escrever)

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