28.5.13

A Cidade Condicional


Deixando Atenas por Ocidente e cavalgando por vinte séculos, chegamos a Europa, maravilha quieta dos homens cansados.

A cidade foi erigida em pedra, depois arrasada e reconstruída em tijolo, depois novamente destruída e refeita em betão e vidro, pensada para durar e espelhar quem a habita, até ao fim dos tempos ou a extinção da espécie.
Europa é um lugar por exclusão de partes, nada de seu que não tivesse importado ou imitado dos impérios circundantes, das culturas que herdou ou que subjugou pela força e pelo cansaço.

A sua moeda é ambígua, tem uma face que representa o império e outra dedicada às diversas províncias, como se de povos se pudesse inventar um povo.
Os cidadãos desentendem-se em muitas línguas e são-lhes dadas palavras vagas e fracas como uma desistência. Ninguém pensa com as palavras de Europa, porque não servem para o íntimo, e os amantes não as trocam, porque não servem para o amor, e os loucos não as gritam, porque são palavras que não voam.

A cidade trabalha como um prisma do avesso, uma mistura de muitas cores que resulta em cinzento. Os prédios, as vestes, as músicas tocadas em algumas esquinas a certas horas, são pardas de cor e de textura, como algo que permaneceu demasiado tempo no bolso de umas calças e já não se distingue. Morre-se muito nesse cinza-Europa, e pode um homem desaparecer apenas porque deixou de ser visto.

Ali, os verbos futuros duram o tempo de uma queda. O passado engole a gente e os sonhos, o sol que nasce parece gasto de outras cidades mais vivas, é um sol de ontem, que não deixa ver nada de novo.

Assim é Europa, mas não tem de ser assim.


Há homens secretos a rir pelos buracos da cidade. Há rachas nos muros, nas paredes, no asfalto do império. Surgem poemas no tecido coçado dos assentos dos autocarros. Versos brutos de coisas brutas e antigas, de pão e vermelho vivo, de dor e ar e boca.
A seriedade, o peso, a história da cidade criaram uma casta de homens que são sombras e anjos, filhos de putas e de deuses distraídos.  

Em algum momento hão-de juntar-se os doidos e votar moções de nuvem, eleger pássaros, escolher as leis do acaso, formas governos de um dia e presidentes de um salto.
Hão-de os bancos comprar cantos e assobios, as pastas negras transportar berlindes e piões, as gravatas atadas em cordas de saltar e os decretos transformados em aviões de papel.

E Europa há-de ser outra coisa, que rebentemos todos se não for outra coisa.

Já nos cansa a nona de Beethoven. Não se canta uma alegria afinada pela fome.
Enfiem as doze estrelas num sítio onde faça muito escuro. Queremos mais cor, e menos bandeiras.

Queremos as coisas primeiras, comer com as mãos e semear o que sobrar nos dedos.

E um dia, isto ainda há-de ser outra coisa. Que rebentemos todos se não for outra coisa. 


(Texto lido a 26 de Maio no LeV, em Matosinhos)


5 comentários:

  1. Belíssimo Nuno...Belissimo!
    "Que rebentemos todos se não for outra coisa."

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  2. "Não se canta uma alegria afinada pela fome."

    Obrigada por partilhar este texto, conciso e incisivo.

    Lídia

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  3. Adorei! Excelente! Queremos palhaços de verdade, rir com seriedade, uma Europa de outra coisa que não esta. Que rebentemos todos se assim não for!

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  4. Fico sempre deslumbrada com os seus textos.Este é excepcional.Também acredito que tudo isto há-de ser diferente um dia.Mesmo que já não veja.
    Gostei muito do seu livro,que ainda não tinha lido quando esteve em Leiria na "minha" Arquivo.Gostei de o ouvir e das palavras que trocámos.
    Continue,Nuno!Acredito na sua escrita.

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  5. Aprecio muito o seu blog. Todos os dias tenho visitado o mesmo e delicio-me com os seus posts. Espero que continue com o bom trabalho.

    Cumprimentos

    Margarida Fonseca Dias

    www.europeanemaildatabases.com

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