29.5.11

Pré-publicação do primeiro capítulo de "No Meu Peito Não Cabem Pássaros"

Nova Iorque



– São quatro segundos, caro amigo, quatro segundos de afli­ção que não dão para um pai‑nosso. O amigo experimente, pai nosso que estás no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no PAM!, quatro segundos e o corpo despedaçado contra o cimento. Se quiser continuar a trabalhar aqui, invente uma oração, pense bem no que há‑de pedir ao altíssimo, mas que seja em menos de quatro segundos.
Dois homens pendurados por arneses a oitenta metros de altura. Os que trabalham dentro chamam‑lhes pardais com uma ironia desnecessária. Quarenta e oito horas semanais de equi­librismo pagas a quatro dólares, um bom emprego para quem acaba de chegar à cidade. A fome mata‑se muitas vezes com núme­ros de circo, ser equilibrista ou palhaço é só uma questão de oportunidade.
– Quando o mundo foi feito, os homens foram postos na terra de pés assentes e medo das alturas. Os homens não são do alto, como os pássaros e os anjos, a vertigem foi‑nos dada pela natu­reza para que não o esquecêssemos. Os homens que sobem dema­siado alto são puxados para baixo pelo diabo, para baixo de tudo, para o inferno que procuram. A força da terra é força do diabo a chamar gente.
Karl tenta não ouvir o colega, concentra‑se na janela e no rodo que faz deslizar com precisão. Este é o primeiro dia de trabalho e ensaia um desvelo que não lhe é comum. Por entre os movimentos do braço e o chiar da borracha contra o vidro, há palavras que lhe chegam e ficam às voltas na cabeça. Céu, cimento, diabo, inferno. Karl nunca esteve tão longe do chão em toda a vida, pouca gente esteve. As montanhas do seu país são uma coisa diferente, altas, sim, mas vão subindo devagar. Esta parede é demasiado vertical, como o degrau infinito de uma escada absurda, um degrau que é fácil descer.
– Eu não hei‑de cair enquanto o mundo não se virar. Não há diabo que chegue ao santíssimo. Há quase um ano que trabalho nisto e deus nunca me deixou cair, um homem deve precaver‑se e foi o que fiz. O pastor deu‑me na mão uma pena de anjo, uma pena às cores de um anjo que o foi ver, e eu trago‑a cosida ao peito. Esta pena é de puxar para deus. «Cose‑a ao peito e nada te pode deitar abaixo, o coração há‑de puxar‑te sempre para cima enquanto a trouxeres contigo.» Foi o que me disse o pastor antes que eu aceitasse este trabalho. Uma parte do ordenado vai para a igreja e mais que fosse, o favor de deus não tem preço e até os pardais podem cair sem penas de puxar para cima.
Tremem as pernas a Karl de frio ou medo, a esta altitude não há diferença. O vento anda com eles de manhã à noite, como um cão vadio que não tem para onde ir e se mete pelas pernas de quem trabalha. Karl dá por si a inventar orações, é um exer­cício difícil, reduzir a algumas frases tudo o que se quer pedir ao criador. Por fim decide‑se e repete para si mesmo «Perdoa‑me senhor, perdoa‑me senhor, perdoa‑me senhor...», a fórmula é simples e tem a vantagem de poder ser usada também em que­das pequenas.



3 comentários:

  1. Auspicioso, de facto. Não desilude. (Já o esperava.) Cá aguardo a possibilidade de ler o resto. É assim uma escrita a atirar para a poesia. Muito melodiosa e bela.

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  2. Também eu aguardo a possibilidade de ler mais.
    Sabe se haverá possibilidade de ser vendido no Brasil? Espero que sim.

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  3. Pode ser que sim, Angela, sei que já foram feitos contactos nesse sentido, não sei em que pé estão. Um abraço,

    Nuno

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