13.4.09

O Marcelo (Oitava Parte)

Quando saí do quiosque, na circunstância de ser quem sou, vi o Marcelo. Esperava-me encostado a uma parede e pela sua expressão parecia ter percebido tudo. Pela expressão e também por todas as perguntas maliciosas que me fez mais tarde. Tinha ido resolver alguns assuntos, rever passados e cheirar o rio que era ainda o mesmo. Quis saber o resto do meu dia mas mudou logo de assunto, por delicadeza ou desinteresse. Trazia nos olhos um brilho de novidade; ideias provocadoras, maldades previstas, um brilho desses. Caminhámos lentamente pela rua, a par e passo com as suas curiosidades e o seu interesse infantil por tudo quanto via.

Passámos por uma sapataria e ele ficou a olhar para uns sapatos feitos à mão. Indicou-mos e disse que me deveriam ficar bem, eu sorri um sorriso pobre e afastei a ideia com um aceno vago. Repetiu o gesto ao passarmos por outras montras, relógios, gravatas, vinhos importados. Expliquei-lhe o que ele já sabia e voltou-lhe o brilho aos olhos. “Mas gostavas de ter, não gostavas?” E eu que sim, mas que eram objectos para outros, eu nem era materialista, bastava-me ter o que comer e os trocos trocados em tabaco. Então ele ganhou uma expressão nova e olhou-me como se fosse um evangelista ou um vendedor de outras coisas, “e a rapariga do quiosque, também é para outros?”. Eu fiquei sem resposta, mas devo ter balbuciado qualquer coisa, que relação havia entre os sapatos e a rapariga? Estas foram as palavras de Marcelo, um discurso demasiado coerente para ser improvisado:

“O teu problema, meu caro amigo real, é tu não perceberes o que queres nem como o podes conseguir. Andas aí a empurrar os dias em pantufas, a viver envergonhado por ocupares o teu espaço e nem és capaz de perguntar a uma mulher qual o seu nome. Tens medo de incomodar o mundo pelo simples facto de existires, por isso segues mudo e triste e pobre, a pedir desculpa a um Deus em que não acreditas por teres uma vida que não praticas.
Os sapatos da loja e a rapariga do quiosque representam exactamente a mesma coisa, algo que tu queres mas finges não querer porque não sabes como o conseguir.
Por sorte ou por qualquer outra coisa tens-me a mim, um pedaço de um teu sonho que tu não conseguiste apagar a tempo. Estou aqui, fugi, e agora sou eu que te vou guiar a realidade.
Eu tenho um plano, vamos beber uma cerveja num sítio de gente alegre que eu já te conto tudo”
(continua)

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