25.3.09

O Marcelo (Primeira Parte)

Foi um dia, ao chegar a casa pela tardinha. Eu abri a porta do quarto, como às vezes abro, e o Marcelo estava deitado na cama a ler um livro e a assobiar. Fiquei espantado, claro que fiquei espantado, mas o Marcelo não. Olhou para mim, sorriu como quem sabe coisas e disse boa tarde, depois voltou ao livro. Eu disse também boa tarde e pousei a pasta e pousei a gabardina.

O Marcelo estava sereno e eu não soube logo o que fazer. Esperei um bocado, sentei-me numa cadeirita que eu lá tenho e fiquei a olhar para ele à espera que algo acontecesse. Ele terminou o capítulo, dobrou o canto da página, calou o assobio e pôs-se de pé sempre a sorrir. Apresentou-se, disse-se encantado por me conhecer e agradeceu-me pela oportunidade. Ora eu continuava perplexo, mas ia dissimulando, disse-lhe que não tinha nada que agradecer, que o prazer era todo meu e como quem não quer a coisa perguntei-lhe exactamente a que oportunidade se referia ele (eu sou por vezes de uma grande subtileza). O Marcelo riu à gargalhada e eu ri também, por simpatia e entretenimento. Ele então contou-me tudo e eu admirei-me muito e mais do que já estava, ficando mesmo bastante admirado.

O que o Marcelo me disse é que ele era meu amigo imaginário, o único, pelas informações de que dispunha, mas ainda que outros houvesse não se arreliaria ele por tão pouco. Que sabia que eu tinha problemas e dormia mal, da vida que não me corria a direito e das minhas diversas angústias. Assim sendo, decidiu aproveitar o meu sono atropelado da noite anterior e infiltrar-se por entre a malta duvidosa que me abanava os pesadelos. Logo que chegou a manhã e a farândola partiu para outros reinos, o Marcelo escondeu-se numa zona escura da consciência e ficou ali, à espera que eu acordasse. O resto fora fácil, assim que eu mal abri os olhos enramelados, ele deslizou para debaixo da cama e ficou caladinho até eu sair de casa.
“Tenho fome” disse-me ele logo a seguir e eu lembrei-me que de facto não tinha em casa nada que se comesse. Nestas ocasiões se apanham os desprevenidos, tivesse eu um pouco de pão e um naco de queijo e nenhuma visita, por mais inesperada, me faria passar vergonhas.
(continua)

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