29.3.09

O Marcelo (Quarta Parte)

A manhã entrou cedo pela janela e esbofeteou-me sem piedade. Não sei se acordei ou se fui ressuscitado mas senti resistências obstinadas do corpo e da alma. No sofá jazia um Marcelo ressonante e baboso num quadro muito pouco digno. Olhei para a rua na esperança de ver passaritos ou as flores de alguma vizinha, alguma coisa com ares de redenção; mas quê, uma senhora barbuda mexia nas tripas de um contentor e o miúdo do 1º esquerdo fazia-me piretes com a língua de fora. Bom dia mundo, só um bocadinho que eu já vou.

Quarenta minutos bem contados, era o tempo que eu tinha até dar entrada no escritório. Era o tempo exacto para um duche a correr que não garantia a imaculabilidade de algumas concavidades do corpo, depois a roupa ao acaso enfiada à pressa e um café instantâneo com duas bolachas ligeiramente obsoletas. Estava eu a terminar a segunda quando entrou na cozinha o Marcelo. E que Marcelo... tinha vestido o meu fato de cerimónia com a gravata às flores, calçado os sapatos de verniz e o cabelo penteado com esmero. “Vamos trabalhar?”. Eu estava com pressa, ressacado, sem paciência, suspirei e lá fomos os dois.

Eu não sou um executivo. Tenho um emprego precário numa seguradora onde passo o dia a arquivar apólices, a avaliar pedidos de indemnização e a remeter qualquer decisão por mais mesquinha que seja para os meus superiores hierárquicos. É isso que eu faço dia após dia, levar papéis de um sítio para o outro, passar letras para um computador e marcar as horas que perco com o carimbo da empresa. A vida desperdiçada para a poder ganhar, a vida vendida por um salário mínimo e meio e ninguém que me dê mais.

O Marcelo não via as coisas pela minha perspectiva, parecia até divertir-se naquele ambiente austero. Passeava pelos corredores com um ar sério e pedante, mirava os ofícios com um olhar circunspecto e assistia às reuniões de chefia como se fosse parte interessada. De vez em quando passava pela minha secretária e perguntava-me com um ar paternalista “Está tudo a andar rapazote?”. Enervava-me aquele seu fazer de conta, mas ao mesmo tempo dava-me vontade de rir, como se o escritório se tivesse transformado num palco e todos fossemos actores de um acto absurdo.
(continua)

3 comentários:

  1. "A vida desperdiçada para a poder ganhar, a vida vendida por um salário mínimo e meio e ninguém que me dê mais."

    Grande frase!

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  2. Olá!

    Vc me add no twitter. Gostei de tuas sacadas p escrever.

    Abs.

    Bruno de Souza.

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  3. Engraçado, também li e re-li a frase que "MT" sublinhou :) acho que todos nos revemos nessa frase...
    sublime este post caro amigo bloguista :)

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