9.2.09

Feitios

Era aquela uma família de gente dotada. Um ministro, vários advogados e alguns médicos ilustres de reputação confirmada pelos maiores doentes. Vivia-se ali a um nível altíssimo, não havia lugar para diletantes amadores ou poetas danados. Artistas e putas, só de importação.
Um dia nasceu o Serginho, e fê-lo muito como costumam fazer outros nas mesmas circunstâncias, ou seja, sem querer. Do calor materno para o branco hospitalar, dos cantos redondos de um corpo que se conhece para um mundo idiota cheio de olhos esbugalhados a adivinhar parecenças, tudo eram renitências e hesitações. Mas nasceu, ou foi nascido, e cedo foi levado para o lar provecto cheio de mognos e livros encadernados em pele.
Que bonito era o Serginho. Uma bela criança que deu em crescer enquanto os outros esfregavam os olhos. E comia tudo o Serginho, e dormia sonos de menino Jesus o Serginho, era um petiz abençoado.
Segunda a tia Luísa, uma solteirona muito direita e de nariz em abre-latas, era este um rebento exemplar. Senão vejamos (e puxava pelo caderninho), aprendeu a dizer adeus aos cinco meses, aos seis já se aguentava de pé e aos nove começou a caminhar, um verdadeiro prodígio de caracóis. Havia apenas uma pequena lacuna no percurso do rebento, é que tardava em falar. Ia já em ano meio e ainda ninguém o tinha ouvido articular o mínimo som, nem “mamã”, ou “papá” ou “pepê” ou mesmo “pá” ou “mã” ou qualquer outro ditongo que os familiares pudessem interpretar. Nada, o catraio fazia voto de silêncio.
Naturalmente o Serginho foi visto pelos melhores especialistas disponíveis no burgo e estes, que eram unânimes em poucas coisas, numa concordavam, o petiz não era mudo, apenas não sabia ou... não queria falar. Feito o diagnóstico, começou toda a família a envidar esforços para convencer o pirralho. Doces, chocolates, cócegas e beijinhos, chantagens (emocionais e das outras), sevícias, palmadas e orelhas torcidas. Aquilo foi o diabo. Mas que viesse a inquisição, o doce arcanjo Gabriel, ou um palhaço coberto de algodão doce, era igual, o raça do moço não falava nem que se virasse o mundo. Impassível e silencioso como uma estátua particularmente impassível e silenciosa. Assim era o Serginho.
Foram passando os anos e foram-se conformando os parentes. O Serginho fazia tudo o que faziam os outros miúdos e às vezes até melhor, tinha as suas habilidades, mas coitadinho, não falava. Pelo menos não era aleijadinho, nem parco de entendimento, e antes assim que pior. Era essa a sua índole.
Até que um dia, estando toda a família a jantar, aconteceu um silêncio no final da sobremesa. Alguns olhavam o copo, outros lambiam a colher e outros nem menos isso. E então, com um ar muito solene levantou-se o Sérgio. Pôs-se muito direito no alto da adolescência espigadota e olhou lentamente em redor. O rapaz inspirou fundo e de seguida abriu a boca. Na sala o ar vibrava com tantas expectativas. Mas foram bem escusadas, o estafermo fechou a boca e de novo se sentou para esperar o café. Quem saberia das suas razões?

4 comentários:

  1. Muiiiito bom! Mas juro que esperei uma só palavra da boca do Serginho - Adeus! ou Passem bem!
    Sem dar leite ao gato que te pertence: você escreve muito, ó menino!

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  2. Excelente texto! Medida exata para um conto. Abraços

    Enzo Carlo Barrocco
    www.jiraudiverso.blogspot.com/

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  3. Bom miniconto (veja que não digo conto minimalista). Conto narrado na terceira pessoa, muito bem desenvolvido, onde tu consegues suavemente prender a atenção do leitor e criar a expectativa em torno do silêncio do protogonista. Gostei muito. Parabéns pelo texto.

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  4. Camarada,

    Gostei muito do teu conto. Feitios...

    Um grande abraço,
    Adérito

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