22.2.14

As Horas Menores



Praia da Barra, 29 de Dezembro 2011
Saio de casa para o vento, é demasiado cedo para que alguma coisa faça sentido. Parece-me estúpida a demanda, estúpido eu e a manhã fria. Pondero voltar para a cama e mandar a minha ideia às urtigas, mas não volto, não mando, e vou ver o mar antes de partir.
Entro na auto-estrada e procuro o CD que gravei com músicas mais ou menos natalícias - cantos tradicionais do Mississipi, de Gales e de Itália gravados por Alan Lomax nos anos cinquenta, gregorianos de uns monges quaisquer, vilancetes espanhóis (que descubro serem insuportáveis), umas coisas estranhas da Meredith Monk e algumas cantatas de Bach. As vozes, distintas e antigas, sucedem-se em shuffle como se circulasse num aeroporto do séc. XVIII, e o dia vai-se compondo.
Paro numa estação de serviço e vou até à cafetaria, não me apetece nada, apenas parar numa estação de serviço. Uma excursão de minhotos, emigrantes de férias, dois vendedores de fato que discutem numa mesa apontando as canetas um ao outro, um casal jovem e bem-parecido ruminando em silêncio uma noite mal resolvida. É importante parar nas estações de serviço.
Sigo para norte, passo o Porto, Braga e Valença. Decido almoçar junto à costa galega, de onde tenho memórias de bom marisco e de um vinho sofrível. Saio da auto-estrada e vou atravessando povoações complicadas, sem grande ordenamento, informações ou sentido. Há muitos carros nas estradas e poucas pessoas na rua. Chego finalmente ao mar e estaciono em frente a uma baía cinzenta.
Vou caminhando à procura de um restaurante, estão quase todos vazios e quase todos anunciam a triste merluza que não me apetece comer. É tarde, chove e eu tenho fome. Desisto por um desses restaurantes adentro e consigo que me sirvam polvo e um copo de vinho à pressão.
Chego ao mosteiro ao final da tarde e sou recebido por um monge que sorri muito e fala pouco. “Chamo-me Alfonso”, aperta-me a mão e faz sinal para que o siga até à hospedaria. Passamos por dois claustros, subimos dois andares e Alfonso abre a porta do quarto e entrega-me a chave. Em cima da cómoda está uma folha de papel com o horário das refeições, da eucaristia e das restantes orações (em horas canónicas e civis) e meia dúzia de regras que devem ser respeitadas. “Está tudo aí explicado”, e despede-se com um aceno.
Fico admirado (desiludido?) com a modernidade do mobiliário e do sistema de aquecimento. Da janela um jardim rústico, de carvalhos, arbustos e flores silvestres. Retiro alguns livros da mochila, deito-me na cama e tento recordar o que me levou até ali, não as circunstâncias biográficas (previsíveis e banais), mas a dúvida e a insegurança que delas nasceram. Adormeço e acordo no escuro, a alguns minutos da hora de jantar.
Há dois refeitórios diferentes, o dos monges, que não vemos mas cujo silêncio se faz sentir, e o dos hóspedes, onde estou eu, um andaluz de cinquenta anos e a filha adolescente e duas senhoras portuguesas que me cumprimentam com sotaque de Cascais e sorrisos abertos. Fala-se pouco ali também, o Andaluz e a filha praticam uma solenidade Bergmaniana, incómoda. As senhoras fazem-me algumas perguntas e explicam-me que estão ali por causa do Pedro, o monge português que conhecem desde pequeno.
Lavamos a louça, despedimo-nos e regressamos aos quartos.
Antes de me deitar desço para fumar um cigarro num dos claustros, um monge aproxima-se e mete conversa, chama-se Philippe e, meio em francês, meio em espanhol, falamos do frio, da noite e de Deus.


Oseira, Galiza, 30 de Dezembro de 2011
Acordo sem o sol. Lavo-me rapidamente e desço estremunhado para assistir às laudes matutinas e à eucaristia. Louvemos, pois.
A capela está na penumbra e em silêncio absoluto, de vez em quando uma inspiração profunda, o pigarrear de um monge ou de um dos hóspedes. Ficamos assim por algum tempo, sente-se o cheiro das velas e um frio de pedras adormecidas. Quando me presto a entender alguma coisa, o órgão solta dois acordes intensos que dão início ao hino. Levantamo-nos solenes enquanto o organista salta no banco, os braços agitam-se frenéticos enquanto o corpo dança num tempo esquisito. Canta-se.
Subo ao quarto após o pequeno-almoço, pego num livro de poemas e saio protegido por um gorro e luvas de lã. A erva alta tão húmida que em poucos passos fico com as botas encharcadas. Atravesso o jardim e passo pela horta onde dois monges trabalham. Há também um pequeno pomar, um curral com meia dúzia de vacas, um galinheiro e dois cavalos que pastam.
Caminho pelo bosque por boa parte da manhã. Quando encontro uma árvore caída ou uma rocha sento-me e leio alguns versos: Termos das árvores/A incomparável paciência de procurar o alto. Deixei o relógio e o telemóvel no mosteiro e guio-me pelo tocar do sino que chega modulado por pássaros e vento. Deixo passar o ofício de terças e vou inventando pequenas orações que respondem aos poemas ou os contrariam.
Passo a tarde a ler e a escrever, pelo meio assisto à nona e a vésperas cantando os salmos em voz baixa. Da janela do quarto observo um monge que varre as folhas mortas e imagino-me naquilo, entregue aos rituais e a certezas pontuais, quando recebo no telemóvel uma mensagem cuidadosamente obscena de uma amiga de outras horas. Fumo à janela aberta e espero pelo jantar.


Oseira, Galiza, 31 de Dezembro de 2011
Admiro os lugares e os dias em que as manhãs fazem sentido. Como aqui, agora. Se teve Deus tanto trabalho a erguer o sol, não fazemos nós homens mais do que a nossa obrigação. Reza-se, canta-se, come-se e trabalha-se. Trabalham, porque eu arrumo as coisas na mochila e preparo-me para ir embora. Desacompanhado de Deus e de qualquer certeza, mas com as perguntas mais afinadas, buriladas pelo frio e pelo silêncio.
Ao caminhar pela galeria vem um monge ter comigo - Àngel, catalão e pintor. Pergunta-me se gosto de arte e propõe-me mostrar os quadros que fez depois de chegar ao convento. Digo-lhe que sim e sigo-lhe os passos excitados até uma outra galeria onde os quadros estão pendurados. Vai-me explicando as composições e eu tento não ouvir, porque são belas e estranhas, e dispensam palavras. Colagens com tecidos grosseiros e puídos, a tela furada por fios de arame e manchada por pigmentos vermelhos e ocres. Pergunto-me se o seu Deus lhe habita as obras ou se aquele é um território franco, onde o sangue ferve de vontades menos santas. Agradeço-lhe e abraçamo-nos. Até à próxima, irmão Àngel.
Entro no carro, acendo o motor e observo o mosteiro por alguns minutos. Quero levar uma imagem que não se apague, uma ideia, uma qualquer coisa que sinta. Leio um último poema: Guarda a manhã/Tudo o mais se pode tresmalhar. Ligo o auto-rádio e parto.
Tenho duas horas para chegar a Vila Real e juntar-me a um grupo de amigos e ao porco que vamos matar. A estrada está húmida e viscosa como a pele de uma salamandra. Faço as curvas lentamente e aumento o volume do auto-rádio para que Bach me possa velar. Ao chegar ao final de uma recta surge um carro descontrolado em sentido contrário, desvio-me dele e vejo-o sair da estrada e embater numa árvore. Paro e aproximo-me sem saber o que fazer, não sei se o número de emergência em Espanha é o mesmo que em Portugal, pensando bem não me lembro qual é o número em Portugal, 115? 118, 112? Abre-se uma porta do carro e sai um homem com as pernas bambas e a cabeça a sangrar, confuso, mas inteiro. Entretanto parou já outro carro de onde sai uma senhora com o telemóvel na mão, fala em galego e pede uma ambulância.
Fico por ali mais uns minutos, ofereço água ao homem e monto o triângulo a uma distância vagamente regulamentar (são 30 ou 100 metros?), quando chega a ambulância despeço-me e volto à estrada.
Faço o resto do caminho em silêncio, sem música, sem um pensamento que se possa aproveitar. Observo as árvores e as casas de pedra que vão aparecendo e sumindo por entre a névoa. Tenho as ideias partidas como se fossem versos de um poema que já não sei dizer de cor.
Entro na auto-estrada e paro na primeira estação de serviço. É importante parar nas estações de serviço.

(Diário Publicado no Jornal de Letras de 5 de Fevereiro de 2014)

13.2.14

vigília



a vida é tão cheia de mortes

como horas em que não és

como horas em que espero

os meses lentos e baços

entre a ferida e a cicatriz

dormir é morrer às vezes

e os dias remendos finos

nos lábios de quem sonha

todos os beijos são quedas

todos os versos são gritos



 
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