18.7.12

Concomitância


Tinha vinte anos em Paris. Estava a meio de uma escala demorada, a caminho de casa, de um país pequeno e de uma vida triste.
Mas isso vem mais tarde, a vida e o futuro mais tarde.
Andou perdido e deslumbrou-se com os edifícios, os jardins, os museus e a gente. Cidade desenhada para o espanto, Paris derrota os olhares.
Ao final do dia entrou num café e pediu uma cerveja. Abriu a mochila de onde tirou um caderno e uma esferográfica, mas não soube escrever nada.  
Recompunha-se ali, pensava um pouco e perguntava os rostos dos outros clientes quando cruzou um par de olhos que também andavam desencontrados.
Fixaram-se durante algum tempo, fugindo para os copos e voltando logo a seguir. Os sorrisos mais fortes que o embaraço e em pouco segundos estavam já à distância de uma mesa de café.
O rumor do sítio e alguns copos de uma cerveja vermelha criaram entre eles uma intimidade precoce. Falaram ao ouvido, ela riu-se do mau francês, e ele de estar ali com ela, loira e estrangeira, um corpo tão pronto.
Saíram para a rua e descobriram a noite inteira. Caminharam, ouviram música, beijaram-se, dançaram e viram espantados como o Verão se apaga nas águas lentas do Sena.
O resto foi silêncio e sonho, até à despedida nebulenta na estação de comboios. Um último abraço e uma promessa tonta. As lágrimas entre ambos sentidas de um amor curto, certeiras de muito doer.
No percurso da sua vida não voltou a ter horas assim. Foi-se deixando pintar lentamente num quadro sem cores, fazendo o que toda a gente faz. Trabalhar, acumular capital, arranjar mulher, filhos, aparelhos domésticos e de transporte, promoções, outras máquinas, algumas amantes mais ou menos remuneradas, ginásio e fins-de-semana à beira-mar. E assim até rebentar, como também se costuma fazer.
Trinta anos passaram. Muitos dias a fingir querença e a adiar vontades, somando cuidadosamente pequenas parcelas de nada. Só os sonhos lhe fugiam por outros caminhos, escalando altos de loucura, caindo em águas fundas. Assim até não poder ser mais.
Os filhos emancipados, uma menopausa precoce com direito a cursos de pintura, e ei-lo que inventa uma viagem de negócios. A Paris, à sua ideia de Paris.
Desceu na estação que o vira partir e acreditou sentir no ar um cheiro íntimo. Passeou o mesmo deslumbre pela cidade condescendente e procurou as pegadas invisíveis de alguém que tinha sido. Um trânsito em espiral até ao centro delongado no café ainda aberto. A mesma mesa, a mesma hora do dia, trinta anos passaram.
Com gestos encadeados pediu a cerveja vermelha, pousou o copo e dirigiu os olhos para uma esperança remota. E foi assim mesmo, com todas as probabilidades em seu desfavor, que viu as suas expectativas reflectidas no espelho da parede longínqua. Era ele que se olhava a si que se olhava.
Duas, três, quatro cervejas, e ela não apareceu. Não se interrompeu o caminho óptico de um desejo triste que observava o passado.
Paris morrera, e nada mais aconteceu.

Conto publicado na revista "A Sul de Nenhum Norte" que pode ser descarregada aqui: http://www.mediafire.com/?5xc6kcfznolwilc

2 comentários:

  1. Vale o desencanto e o desencontro para que este belo texto possa existir. Tocante, tão possível que até dói.

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  2. Podia ser um "antes do amanhecer"... Parabéns pelo prémio Leya.

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