Tinha
vinte anos em Paris. Estava a meio de uma escala demorada, a caminho de casa,
de um país pequeno e de uma vida triste.
Mas
isso vem mais tarde, a vida e o futuro mais tarde.
Andou
perdido e deslumbrou-se com os edifícios, os jardins, os museus e a gente.
Cidade desenhada para o espanto, Paris derrota os olhares.
Ao
final do dia entrou num café e pediu uma cerveja. Abriu a mochila de onde tirou
um caderno e uma esferográfica, mas não soube escrever nada.
Recompunha-se
ali, pensava um pouco e perguntava os rostos dos outros clientes quando cruzou
um par de olhos que também andavam desencontrados.
Fixaram-se
durante algum tempo, fugindo para os copos e voltando logo a seguir. Os sorrisos mais fortes que o embaraço e em pouco
segundos estavam já à distância de uma mesa
de café .
O rumor
do sítio e alguns copos de uma cerveja vermelha criaram entre
eles uma intimidade precoce . Falaram ao
ouvido, ela riu-se do mau francês, e ele de estar ali com ela, loira e estrangeira,
um corpo tão pronto.
Saíram para
a rua e descobriram a noite inteira. Caminharam, ouviram música, beijaram-se,
dançaram e viram espantados como o Verão se apaga nas águas lentas do Sena.
O resto foi silêncio e sonho, até à despedida nebulenta na estação de comboios. Um último abraço e uma promessa
tonta. As lágrimas entre ambos sentidas de um amor curto, certeiras de muito
doer.
No
percurso da sua vida não voltou a ter horas assim. Foi-se deixando pintar lentamente
num quadro sem cores, fazendo o que toda a gente
faz. Trabalhar , acumular
capital , arranjar mulher ,
filhos , aparelhos
domésticos e de transporte ,
promoções , outras
máquinas, algumas
amantes mais
ou menos
remuneradas, ginásio e fins-de-semana à
beira-mar. E assim até rebentar , como também se
costuma fazer.
Trinta
anos passaram. Muitos dias a fingir querença e a adiar vontades, somando
cuidadosamente pequenas parcelas de nada. Só os sonhos lhe fugiam por outros
caminhos, escalando altos de loucura, caindo em águas fundas. Assim até não
poder ser mais.
Os
filhos emancipados, uma menopausa precoce com direito a cursos
de pintura, e ei-lo que inventa uma viagem
de negócios. A Paris, à sua ideia de Paris.
Desceu
na estação que
o vira partir
e acreditou sentir no ar
um cheiro
íntimo. Passeou
o mesmo deslumbre pela
cidade condescendente e procurou as pegadas invisíveis
de alguém que
já tinha
sido. Um trânsito
em espiral até ao centro delongado no café
ainda aberto .
A mesma mesa ,
a mesma hora
do dia , trinta anos passaram.
Com gestos encadeados pediu a cerveja
vermelha,
pousou o copo e dirigiu os olhos
para uma esperança
remota . E foi assim
mesmo , com
todas as probabilidades em seu desfavor , que viu as suas expectativas
reflectidas no espelho da parede longínqua .
Era ele
que se olhava a si
que se olhava.
Duas, três , quatro
cervejas, e ela não
apareceu. Não
se interrompeu o caminho óptico de um
desejo triste que observava o passado .
Paris
morrera, e nada mais aconteceu.
Conto publicado na revista "A Sul de Nenhum Norte" que pode ser descarregada aqui: http://www.mediafire.com/?5xc6kcfznolwilc
Vale o desencanto e o desencontro para que este belo texto possa existir. Tocante, tão possível que até dói.
ResponderEliminarPodia ser um "antes do amanhecer"... Parabéns pelo prémio Leya.
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