21.4.12

Um Prédio


No segundo esquerdo um homem morreu de desejo.
No terceiro direito viveu um padre que bateu com a cabeça em Deus e caiu em cima de uma mulher.
Debaixo das escadas da entrada um menino guarda pedras e vidros coloridos para um dia ser artista.
É um prédio frágil e sentimental, de tangos e boleros que tocam por dentro das paredes e se ouvem à noite só por sonhos. Quem lá mora enlouquece lentamente até fazer parte dele. É um prédio feito de muitas loucuras.
Há uma menina a dançar sozinha no rés-do-chão.
Há um cão que olha para a rua e ladra aos homens de bigode.
Há um velho doente que fuma sentado e se apaixona por todas as raparigas.
O prédio tosse e suspira e arrepia-se às vezes.
No terceiro esquerdo já não mora ninguém. As estantes da sala guardam restos de felicidade: fotografias, livros oferecidos, filmes que foram vistos a dois e que agora doem ao lembrar.
As janelas do prédio dão todas para dentro.
No segundo direito uma senhora antiga, um vestido negro e um desvario de mãos a bordar flores.
No primeiro esquerdo está um homem deitado ao lado de uma mulher que respira e dorme com o corpo todo.
Faz frio no prédio, sempre frio, mesmo no Verão. Quando alguém entra tem de vestir um casaco, ou sentir tristeza ou acender o que puder arder.
No primeiro direito uma rapariga de olhos fechados grita sozinha com medo do que lhe pode acontecer.

(Texto concebido para o concurso Performance Architecture de Guimarães 2012)

2 comentários:

  1. Um prédio em que 'as janelas dão todas para dentro', já valeu o texto. Muito bom!

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  2. Texto sublime! Metaforizou-se uma arquitectura. Pura Beleza.

    Grata pela partilha.

    Sandra Maria Ferreira

    http://www.papoilasonhadora.blogspot.com/

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