28.10.10

Acordar um Dia XLII

Acordar um dia com o futuro amarrotado e sujo.
Alguém me engelhou a vida enquanto dormia, uma maldade inútil.
Saio à rua sem o futuro e vejo outros como eu. Alguns escondem a pilinha por detrás de ideias muito esfarrapadas, outros riem, há quem voe como se nada importasse.
Vêm senhores de outros países olhar para a gente, dão-nos moedas e nós bebemo-las porque não temos bolsos nem temos nada. Os senhores dão-nos beijinhos na melancolia e depois partem porque se faz tarde. Nós ficamos, porque somos daqui, porque sublimámos o tempo à força de o não ter.
Ficamos assim quietos entre o mar e o estrangeiro, numa falha de mundo feita à nossa medida. A aprender coisas secretas e a deitá-las ao ar, ocupados no exercício louco de ser vento.
Num dia desatento serão os peixes a pescar-nos para o fundo, e nós vamos, nós vamos sem nada que nos prenda.

26.10.10

A Dar Com o Sol



Tu não sabes, não sabes nada, mas um dia acordei com certezas coladas à pele. A janela estava aberta e não era suor, era um líquido pesado e eu abri os olhos e percebi tudo.

O peso que levamos nas pernas é todo feito de tempo. Levamos o tempo de passeio nas pernas até que um dia… sabes? Um dia o tempo farta-se e trepa por nós acima e ficamos… sabes?

Um dia espanto e depois nada, foi o que eu pensei muitas vezes, perde-se o espanto com as pernas. Uma senhora que aí andava ficou maluca de dançar e tiveram que a levar, essa nunca mais morre, foi a dançar para a rua.

O sol é mal empregado em mim, lembra-me as coisas lá de fora e é tudo mal empregado em mim. Tu nunca soubeste dançar, não sabias de nada com as pernas, eras galante sempre no mesmo sítio... Este sol é uma demasia de mundo.

Está calor ou frio aqui? Nunca nada está bem, mas eu já nem sei porquê, lembras-te daquela cantiga? Aquela que eu gostava… canta uma qualquer, o que eu gostava de cantigas, canta uma qualquer, uma que dê com o sol. 


(Desenho de Marco Mendes)
 
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