Sob a forma de letras nas páginas de um caderno. Assim e só. Um caderno de linhas direitas e palavras com letras em diligências de sentido. Encontrou-o ao voltar para casa, estava para se sentar no banco do autocarro e deu com ele ali guardado. Estava fechado, com a capa de fora e o resto lá dentro. Isso das linhas e das palavras. Olhou à sua volta mas ninguém tinha cara de autor, por isso levou-o para casa, abriu-o e leu-o.
O caderno era um diário, ou melhor, era uma tentativa de diário. Fragmentos de sucessos, pensamentos e memórias sem estrutura de tempo ou de lógica. Ela estava habituada a ler, por isso percebeu tudo. A letra era de homem e algumas páginas tinham manchas de café e cinza de cigarro, pode não parecer importante, talvez não seja. As coisas escritas interessavam-lhe e ela leu tudo, de enfiada. Depois leu mais uma e outra vez, de forma a compreender melhor o que pudesse ter escapado. Estava habituada a ler.
Ficou surpreendida em mais do que um modo. Nem tudo a impressionou, mas nada a deixou indiferente. As histórias contadas eram simples, acontecimentos que não mudam vidas, viagens de idas e voltas, dias de espanto e outros de tédio. Algum livro lido, telefonemas do passado e ideias sem rumo. Era-lhe estranho ouvir de novo (ela ouvia quando lia) alguém a falar de si. Falar assim, a sério, de coisas feitas, dos momentos em que se percebem palavras antigas, de minutos passados na primeira pessoa, dos intervalos do ser em que não pertencemos a mais nada.
Ela vivia sozinha desde a partida de um homem, do homem. Ele que também escrevia e que a acostumou a ouvir palavras diferentes, a ler o escritor em vez da escrita. A escutar as frases elegantes e complexas com as quais ele ganhava a vida. Eram frases bonitas, em que ela se perdia sem dificuldade, mesmo quando as não entendia. Sobretudo dessas vezes. Ele dizia-se poeta e ela dizia que sim, depois beijava-lhe as mãos e as palavras e repetia baixinho “poeta”. Um dia ele partiu, morreu, fugiu ou ainda pior. Foi e levou as palavras. Desde então ela nunca mais leu, porque não conhecia outros poetas.
Mantinha algumas amizades que eram feitas de banalidades e do medo de solidão. Os seus amigos estavam sempre “bem” ou “mais ou menos”, uma vez por outra “um bocado em baixo”, dia após dia encerrados nos sentimentos das telenovelas que viam e que gostavam de comentar. Eram moderados, contidos, mal sentidos e mal ditos.
A voz no caderno era diferente. Apesar das frases curtas quase sem adjectivos, era uma voz de inseguranças, depressões, delírios, paixões. O estilo era diferente do que conhecia, mas isso não interessava, era o caderno de um poeta, de um outro poeta. Este era subtil e escondia-se em expressões batidas, dizia por exemplo “os homens” em vez de “aqueles que sofrem”, falava do mundo como alguém que lá vivesse; era delicado, omitia a morte de pessoas queridas e as doenças da juventude. Mas ela sabia ler até nas entrelinhas, via a beleza do que fora deixado de fora, a sensualidade presente na omissão do sexo, e não se deixava enganar pela simplicidade. Este era um poeta dos incertos. E depois esse caderno, deixado ali como se não fosse para ela e unicamente para ela. Quem mais poderia ter apreciado esse dom? Quem outro que não ela saberia dar o valor devido às linhas direitas de palavras com letras?
Nessa noite houve sonhos, um sonho. As frases do caderno andavam à roda e eram ditas ora por ela ora por um homem de barba, um homem belo. Não era o que dizia, mas como ela o ouvia, em voz baixa e só para ela. “Hoje fui ao mercado”, “Custa-me acordar tão cedo”, “Porque me gritou hoje a Teresa?”, ela percebia tudo e ria por dentro e por fora do sono enquanto descascava as metáforas devagarinho. Ria da sua ironia, capaz de confessar os desejos simples que seguramente não eram os seus. Ela estava habituada a ler, mesmo em sonhos, mesmo os sonhos.
Foi só o início. Passou a estar mais atenta, fixava as caras e os gestos sempre à procura, sem saber sequer se o queria encontrar. Quem me olha, quem me pensa? Ela sabia que ele a via, que a via muito lá dentro. Ela não o via a ele, mas relia o caderno todas as noites e entrava cada vez mais fundo nesses abismos de uma mente intricada. Ele era discreto, ou talvez tivesse receio, ainda assim fazia-se sentir. Deixava-lhe pequenos indícios, subtis, ténues, a ela que sabia ler. Um jornal dobrado em quatro (o quotidiano vencido), o panfleto de uma manifestação (a revolta adiada), um maço de cigarros vazio (os hábitos sublimados). O banco do autocarro trazia-lhe cada dia os sinais de uma presença que ela aprendeu a conhecer e que lhe prometia tudo o que ela quisesse esperar.
Quero dizer tanto que não consigo proferir palavra. Que texto, meu Deus. (Eu creio.) Que texto. (Ando a refrear os ! mas era o que me apetecia aqui.) Obrigada. Lindo e poético. (para não variar. E ainda bem.)
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