1.9.09

Um Crer Assim Tanto

Sob a forma de letras nas páginas de um caderno. Assim e . Um caderno de linhas direitas e palavras com letras em diligências de sentido. Encontrou-o ao voltar para casa, estava para se sentar no banco do autocarro e deu com ele ali guardado. Estava fechado, com a capa de fora e o resto dentro. Isso das linhas e das palavras. Olhou à sua volta mas ninguém tinha cara de autor, por isso levou-o para casa, abriu-o e leu-o.

O caderno era um diário, ou melhor, era uma tentativa de diário. Fragmentos de sucessos, pensamentos e memórias sem estrutura de tempo ou de lógica. Ela estava habituada a ler, por isso percebeu tudo. A letra era de homem e algumas páginas tinham manchas de café e cinza de cigarro, pode não parecer importante, talvez não seja. As coisas escritas interessavam-lhe e ela leu tudo, de enfiada. Depois leu mais uma e outra vez, de forma a compreender melhor o que pudesse ter escapado. Estava habituada a ler.

Ficou surpreendida em mais do que um modo. Nem tudo a impressionou, mas nada a deixou indiferente. As histórias contadas eram simples, acontecimentos que não mudam vidas, viagens de idas e voltas, dias de espanto e outros de tédio. Algum livro lido, telefonemas do passado e ideias sem rumo. Era-lhe estranho ouvir de novo (ela ouvia quando lia) alguém a falar de si. Falar assim, a sério, de coisas feitas, dos momentos em que se percebem palavras antigas, de minutos passados na primeira pessoa, dos intervalos do ser em que não pertencemos a mais nada.

Ela vivia sozinha desde a partida de um homem, do homem. Ele que também escrevia e que a acostumou a ouvir palavras diferentes, a ler o escritor em vez da escrita. A escutar as frases elegantes e complexas com as quais ele ganhava a vida. Eram frases bonitas, em que ela se perdia sem dificuldade, mesmo quando as não entendia. Sobretudo dessas vezes. Ele dizia-se poeta e ela dizia que sim, depois beijava-lhe as mãos e as palavras e repetia baixinho “poeta”. Um dia ele partiu, morreu, fugiu ou ainda pior. Foi e levou as palavras. Desde então ela nunca mais leu, porque não conhecia outros poetas.

Mantinha algumas amizades que eram feitas de banalidades e do medo de solidão. Os seus amigos estavam semprebemoumais ou menos”, uma vez por outraum bocado em baixo”, dia após dia encerrados nos sentimentos das telenovelas que viam e que gostavam de comentar. Eram moderados, contidos, mal sentidos e mal ditos.

A voz no caderno era diferente. Apesar das frases curtas quase sem adjectivos, era uma voz de inseguranças, depressões, delírios, paixões. O estilo era diferente do que conhecia, mas isso não interessava, era o caderno de um poeta, de um outro poeta. Este era subtil e escondia-se em expressões batidas, dizia por exemplo “os homensem vez de “aqueles que sofrem”, falava do mundo como alguém que vivesse; era delicado, omitia a morte de pessoas queridas e as doenças da juventude. Mas ela sabia ler até nas entrelinhas, via a beleza do que fora deixado de fora, a sensualidade presente na omissão do sexo, e não se deixava enganar pela simplicidade. Este era um poeta dos incertos. E depois esse caderno, deixado ali como se não fosse para ela e unicamente para ela. Quem mais poderia ter apreciado esse dom? Quem outro que não ela saberia dar o valor devido às linhas direitas de palavras com letras?

Nessa noite houve sonhos, um sonho. As frases do caderno andavam à roda e eram ditas ora por ela ora por um homem de barba, um homem belo. Não era o que dizia, mas como ela o ouvia, em voz baixa e para ela. “Hoje fui ao mercado”, “Custa-me acordar tão cedo”, “Porque me gritou hoje a Teresa?”, ela percebia tudo e ria por dentro e por fora do sono enquanto descascava as metáforas devagarinho. Ria da sua ironia, capaz de confessar os desejos simples que seguramente não eram os seus. Ela estava habituada a ler, mesmo em sonhos, mesmo os sonhos.

Foi o início. Passou a estar mais atenta, fixava as caras e os gestos sempre à procura, sem saber sequer se o queria encontrar. Quem me olha, quem me pensa? Ela sabia que ele a via, que a via muito dentro. Ela não o via a ele, mas relia o caderno todas as noites e entrava cada vez mais fundo nesses abismos de uma mente intricada. Ele era discreto, ou talvez tivesse receio, ainda assim fazia-se sentir. Deixava-lhe pequenos indícios, subtis, ténues, a ela que sabia ler. Um jornal dobrado em quatro (o quotidiano vencido), o panfleto de uma manifestação (a revolta adiada), um maço de cigarros vazio (os hábitos sublimados). O banco do autocarro trazia-lhe cada dia os sinais de uma presença que ela aprendeu a conhecer e que lhe prometia tudo o que ela quisesse esperar.

1 comentário:

  1. Quero dizer tanto que não consigo proferir palavra. Que texto, meu Deus. (Eu creio.) Que texto. (Ando a refrear os ! mas era o que me apetecia aqui.) Obrigada. Lindo e poético. (para não variar. E ainda bem.)

    ResponderEliminar

 
Add to Technorati Favorites Free counter and web stats