7.9.09

Mariana (Quarta e Última Parte)

A partir desse momento tudo mudou. Essa consciência do inevitável, da punição infalível, mudou a perspectiva e amainou exaltações. Estávamos juntos, para o melhor e para o pior, na vida (minha) e na morte (sua). Ela era como era e eu também assim, restava-nos baixar as cabeças e puxar o jugo. Talvez aprendêssemos a assobiar baixinho e a chorar como quem respira, sem pensar no gesto nem saber porquês.

Os tempos que se seguiram fizeram-se de compromissos. A voz da Mariana continuou estridente, mas tornou-se contida, quase serena. Começou também a cuidar a linguagem, evitando certas palavras e usando outras que me vai ouvindo. Deixou os lamentos e os protestos e passou a falar de coisas que sente, de memórias de infância e da aldeia que deixou um dia.

Por vezes dá-me conselhos e diz-me que está tudo bem, outras vezes fica ali calada a sorrir porque me pesa os cansaços. Em troca eu tento enriquecer-lhe os sonhos. Leio histórias românticas que são do seu agrado e sigo a telenovela das nove. Comecei também a perguntar aos meus colegas coisas da vida deles, dos filhos, das mulheres e os filmes que têm visto, ah, os filmes. Vamos ao cinema duas vezes por semana, ao início era um filme para mim (sem beijos) e outro para ela (sem complicações), ultimamente começa a ser difícil distinguir.

A Mariana apresentou-se há exactamente dois anos, mais ou menos. Depois foi o que se viu. Acabámos por nos tornar numa espécie de casal quase vulgar e quase feliz. Como tantos, não todos. Talvez gostemos mesmo um do outro, talvez tenhamos descoberto um tesão impossível e assim inesgotável. Talvez sejamos uma simbiose necessária de vida e morte, dia e noite, ser e não ser.

Se eu já pensei? Já. Um frasquinho de comprimidos às cores e a janela aberta para o gato procurar outra casa. Partiríamos os dois para mundos que não conhecemos. Pensei nisso várias vezes, mas tenho dúvidas. Desconfio do além e não me quero pôr nas mãos de Um Qualquer. E depois quem me garante que eu a encontro, que ela existe fora de mim? Que outro mundo me poderia servir se eu nunca cheguei a perceber este, assim finito e cheio de homens? Enquanto penso nisto o gato olha para mim. Ele que também sabe coisas.

2 comentários:

  1. Havia tanto para dizer sobre o que separa a sanidade da insanidade. (É tão pouco o que as separa...Quando cremos numa loucura, então talvez já estejamos loucos, ainda que tenhamos noção que é numa loucura que acreditamos.) Mas é como diz o outro: não temos tempo. Esta Mariana desconcertou-me sobremaneira. Está aqui uma escrita que me fala. Não me posso é esquecer que fala a muita gente.

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  2. tenho que te arranjar mais umas ilustrações, que isto anda um pouco despido. E o livro, avança?

    Dá-lhe!

    Marco

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