Era uma pessoa humana, pois claro. Um dia foi encontrada na cama extremamente inconsciente. Morta até. Na cama acontecem muitas coisas importantes e definitivas. Nascimentos, amores e mortes. E nem vale a pena falar dos sonhos, quase nunca vale a pena.
A pessoa humana que o já não era tinha um nome que poderia muito bem ser Mariana. Acredito que o fosse. Mariana é até um nome muito possível, é nome de pessoa que existiu e é um nome bom para recordar muitos anos depois. Não neste caso.
Eu não tinha memória da Mariana, mas tinha a lembrança de uma noite. Uma noite em que o seu nome era outro, talvez Marlene ou Tatiana, talvez outra coisa qualquer. Estivemos juntos durante cem euros, oitenta para ela e vinte para a pensão. Depois cada um seguiu o seu caminho e chamou-se como quis. Eu voltei a ser Mário, como sou quase sempre e ela lá foi sendo o que era antes do telefonema.
Agora algo sobre mim.
Eu estou vivo. Chamo-me Mário e sou professor de história nas horas que não são livres. Nas outras sou muito pouco, leio livros antigos sobre coisas ainda mais antigas e passeio por jardins de gente sozinha. Nas tardes de domingo às vezes vou pescar num riacho falho de peixes. Tenho a idade que tenho e vivo sem ninguém. As poucas mulheres com quem eu falo são pagas. Uma é a dona Lurdes que me limpa a casa e me passa a roupa dois dias por semana. As outras têm muitos nomes e encontram-se pelos jornais. Uma ou duas vezes por semana, às vezes menos, às vezes mais. Eu pago e falamos, pouco, que elas não estão ali para falar e eu também tenho os meus caprichos.
A Mariana apresentou-se há exactamente dois anos, mais ou menos. Dois dias depois de tomar uma embalagem inteira de comprimidos, mais ou menos. Bem sei que pode parecer estranho, mas é sobretudo incomodativo. Eu dormia um sonho meu, de voos, quedas e mulheres disformes, dessas que se sonham. De repente ela apareceu-me num fundo negro de direito de antena. Cumprimentou-me como se me conhecesse e desatou a falar. Falava muito, e falava de tudo. Eu sonhava apenas e não queria saber daquilo, mas a Mariana não é de subtilezas, entrou por mim adentro sem limpar os sapatos e disse o que tinha a dizer.
Falou-me de como tinha acordado num lugar escuro e vazio, vazio de gente. Falou-me do tédio daquilo tudo, de como não tinha fome nem sede e também das perguntas sem resposta. A Mariana sabia-se morta, mas não lhe parecia motivo suficiente para um tal tratamento.
A mulher não se calava e usava todas as figuras de estilo das conversas banais, numa retórica aprendida em autocarros e filas do talho. Uma noite inteira de triplas repetições “Eu gritava, eu gritava, eu gritava...” de hipóteses e antíteses “Mas como é que eu morri? Como é que eu não morri?” De exemplos na primeira pessoa “É que eu se mandar uma pessoa para algum sítio não a deixo ali sem dizer água vai ou água vem...” e outros recursos afins. Foi a sua primeira aparição, foi horrível, foi desesperante, foi só o início.
(Continua)
Assustador (não tenho bem a certeza porquê). Muito bom, para não variar.
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