O Sonho do Marcelo
Só mulheres são tantas. Estão vestidas de preto mas não se confundem com viúvas. Não são viúvas. São órfãs de um pai que não o seu. Vestem de preto mas assemelham-se a putas.
São putas.
O padre parece contrariado. Está contrariado. Dirige a função, reza, pede pela alma e tem o rosto crispado. Também ele é uma puta, uma puta espiritual, com o corpo e o gesto longe do querer. O padre veste de branco.
Do círculo interno fazem ainda parte outras personagens. Homens de poucos dentes, familiares constrangidos e uma mulher igual às outras que não é igual às outras. O coveiro não tem opinião e olha para cima, para o sol. Há mais novidade no sol do que na cara das pessoas, pensa o coveiro.
Outros observam de longe, alguns conversam entre si e outros não. São quase todos homens e têm olhares duros, olhos de ver morte. Vieram à procura de confirmação, de certeza. O caixão está fechado mas tem o peso de uma vida e eles sabem-no.
Há dois miúdos parados ao longe, empoleirados no muro. Um veio por curiosidade, o outro veio do passado e não existe verdadeiramente. Estão os dois em silêncio desigual, empoleirados no muro.
Alguém canta uma cantiga distante, demasiado distante para ser ouvida. A cantiga é triste como podem ser todas as cantigas cantadas lá longe.
A terra cai às pazadas e o mundo vai ficando baço, como a cantiga. Distante, demasiado distante para ser ouvido.