29.5.09

Acordar um Dia XXVII

Acordar um dia...pois sim, isso. Coisas que se vão dizendo. Mas quem o diga pese a palavra atrás da língua. O sono e a vigília, aceso e desligado, numa dualidade perfeitinha e escorreita. Mas não é exactamente assim, pois não? Entre um e outro quantos graus e degraus? Quanto pesa um sono descansado? Quanto luz na lucidez? Muita, pouca? A que horas nos vamos sabendo despertar? Quanta noite dormimos?
Os olhos que fecham o mundo nem sempre abrem o sono, é assim não é?
Pois, é isso.

26.5.09

O Marcelo (Undécima Parte)

O Sonho do Marcelo

Só mulheres são tantas. Estão vestidas de preto mas não se confundem com viúvas. Não são viúvas. São órfãs de um pai que não o seu. Vestem de preto mas assemelham-se a putas.
São putas.

O padre parece contrariado. Está contrariado. Dirige a função, reza, pede pela alma e tem o rosto crispado. Também ele é uma puta, uma puta espiritual, com o corpo e o gesto longe do querer. O padre veste de branco.

Do círculo interno fazem ainda parte outras personagens. Homens de poucos dentes, familiares constrangidos e uma mulher igual às outras que não é igual às outras. O coveiro não tem opinião e olha para cima, para o sol. Há mais novidade no sol do que na cara das pessoas, pensa o coveiro.

Outros observam de longe, alguns conversam entre si e outros não. São quase todos homens e têm olhares duros, olhos de ver morte. Vieram à procura de confirmação, de certeza. O caixão está fechado mas tem o peso de uma vida e eles sabem-no.

Há dois miúdos parados ao longe, empoleirados no muro. Um veio por curiosidade, o outro veio do passado e não existe verdadeiramente. Estão os dois em silêncio desigual, empoleirados no muro.

Alguém canta uma cantiga distante, demasiado distante para ser ouvida. A cantiga é triste como podem ser todas as cantigas cantadas lá longe.

A terra cai às pazadas e o mundo vai ficando baço, como a cantiga. Distante, demasiado distante para ser ouvido.

7.5.09

Acordar um Dia XXVI

Acordar um dia com palavras estrangeiras metidas pelos interstícios das ideias.
Assim mesmo, pelos interstícios das ideias.

4.5.09

O Marcelo (Décima Parte)

Começaram os ensaios. O Marcelo ensinava e eu tentava cumprir da melhor maneira possível. Primeiro foram as regras, simples mas cheias de subtilezas, dessas que fazem um bom jogo. Seguiram-se depois as diferentes estratégias ofensivas e defensivas e algumas manobras de diversão. Desde que o conhecia nunca o tinha visto tão sério e tão compenetrado, irritava-se facilmente com a minha inépcia e repetia tudo mais depressa e com raivas na voz. Quando me apanhava distraído mandava um berro e depois proferia discursos que me pareciam desproporcionados “O póquer, como qualquer jogo, é uma guerra. Mais importantes do que as armas com que te bates é a coragem que tens ou que inventas e teres a cabeça limpa para ver o que os outros descuidam”. Ensinou-me a não beber durante os jogos, mas a fingir que bebia. Uma garrafa de bolso cheia de sumo de maçã e um “ahhh” curto depois de cada gole.
A parte final do treino foi dedicada ao corpo e à expressão. Eu nunca imaginara a importância que poderia ter a distância entre o corpo e a mesa, ou o ângulo dos cotovelos ou mesmo o entrelaçar dos dedos. Ainda mais decisivo era tudo o que ficava do pescoço para cima. O Marcelo explicou-me detalhadamente e como se fosse um segredo o seu modelo dos sete sorrisos e doze olhares. Segundo ele, a perfeita combinação entre uns e outros era capaz de provocar os mais variados efeitos num adversário. Uma ida à casa de banho, uma comichão no nariz, um arrepio no fundo das costas... Todo o tipo de distracções e condicionamentos físicos e mentais passíveis de inverter o delicado equilíbrio de forças.
O curso durou uma semana em que pouco dormi. Nas poucas horas em que o consegui fazer sonhei com cartas e homens de bigodes ensopados em whisky. Imaginava sequências e bluffs épicos durante as horas de trabalho e mesmo enquanto comia dava por mim a praticar o olhar com os outros clientes do snack-bar.
Quando a semana terminou eu sentia-me já um jogador, um ilusionista das possibilidades, como dizia o Marcelo. Estava pronto para a batalha.
(continua)
 
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