20.4.09

O Tigre de Metro e Meio

“Tantos, muitos e bravos. Vão sendo lembrados por aqui e por ali, num jantar de gala, nas celebrações oficiais, enfim, essas merdas. Muitos são ainda hoje conhecidos, o Bernardes, o Mendes de Brito, o Curado Cruz, o Ravinas, o Rocha Melinho, enfim... essa malta. Mas o nome dele parece que desapareceu para sempre, uma rasura na ficha de jogo e outras mil na memória de quem viu. Maldito jogo e maldita vitória”

Dizia-me estas coisas e bebia mais vinho. O lugar era uma tasca da baixa que eu acreditava estar encerrada há pelo menos sete anos. Talvez estivesse para mim, mas não para o Ferreira Fonseca, o “Tigre de Metro e Meio”. Setenta e cinco anos rijos e cirróticos como poucos. Dizia-me estas coisas e bebia mais vinho.

“O Joaquim Eulógio era de uma raça aparte, uma raça aparte, ouviste? As avarias que ele fazia com a bola não eram deste mundo, era o que a gente pensava e era verdade. O homem tinha mistério, aquilo era pacto com o Sujo, mas a gente não sabia. Foi um ano excepcional, limpávamos os jogos todos. Por mim não passava nada, nem bola nem pernas nem nada! Ouviste? Nada! O Expedito governava jogo, com os olhos lá para a frente punha a bola nos pés de qualquer um, sacana do Expedito... Depois vinha o Eulógio e ela estava lá dentro em menos de um ai, tinha uns pés que faziam renda e um remate que ai Jesus. Um diabo é o que ele era, um diabo ou vendido ao diabo que é a mesma coisa”.

A tasca estava vazia e os berros do Ferreira Fonseca faziam eco. A velhota que servia os tintos vinha do nada, de uma escuridão cheia de objectos estranhos lá por detrás do balcão. Vinha, servia o vinho sem uma palavra e voltava para o escuro.

“Alguma coisa a gente sabia, havia histórias... a unha de javali pendurada ao pescoço, as rezas numa língua esquisita... latim ou chinês ou que raio era aquilo... e depois aquela coisa, nos quartos-de-final, viu o Ribeiro e jurava pela mãezinha. Quando um homem jura pela mãezinha é porque viu ou então é parvo... mas o Ribeiro não era parvo e viu. Estava atrás da baliza, já todos tinham ido para casa e ele ali, em tronco nu com uma faca na mão e uma galinha na outra, uma galinha preta, preta ouviste?”

A velha tinha ligado o rádio e ouvia missa, às sete da tarde numa quinta-feira nenhuma rádio passa missa, mas no rádio da velha sim. O cheiro das cigarrilhas do Ferreira Fonseca começava a deixar-me agoniado, ou talvez fosse o vinho, mas eu queria ouvir o resto da história. Dei mais um trago de olhos fechados e devolvi-lhe a atenção, parecia estar a chorar mas talvez não estivesse.

“No dia da final tínhamos as tripas às cambalhotas, aquilo ia ser o jogo mais importante das nossas vidas, era daquela vez ou nunca mais... a equipa era boa mas não se ia aguentar, não havia massa, os gajos de Lisboa já tinham comprado metade do plantel. Andávamos todos de cá para lá como baratas tontas, mas ele não, estava sentado sozinho com cara de abantesma e calado que nem um rato. O mister chamou e lá fomos para o relvado. Eu nunca tinha visto tanta gente... bandeiras e berros e gaitas e quê... um arraial... e a gente à rasca.
O jogo, já se sabe, foi o que foi. Começámos a correr e nem tripas nem gente nem nada, só víamos a bola e a baliza. Os outros coitados nem sabiam para que é que os tinham chamado. Foram cinco bem aviados, cinco, ouviste? Parecia a feira popular, mais uma corrida mais uma viagem e toma lá disto... dos cinco três foram do Eulógio, pé esquerdo, pé direito e uma cabeçada mais certeira que um taco de bilhar, limpinho. O homem estava em todo o lado, nem Deus nem nada, aquilo é que era onipotência e onipresência e pai nosso que estás no céu, que no campo só estava o Eulógio. Foi o herói do jogo, e das vidas daquela malta...Acabou a função e parecia o fim do mundo, um mar de gente aos gritos, os garotos e as miúdas a rasgarem as camisolas e o champanhe a descer pelas goelas... naquele tempo não havia vergonha no beber... estávamos nisto e alguém quis saber do Eulério, onde está o artista? Onde está o artista d’um cabrão?”

Mas já ninguém foi capaz de o ver, só mais tarde, no dia seguinte... todos procuravam e chamavam por ele mas nada... até que veio a mulher, aflita, com uns olhos que metiam medo e a repetir as mesmas perguntas vezes sem fim, “Onde está ele?”, “Onde está a minha menina, ele tinha trazido a menina, alguém viu a minha menina?” ninguém tinha visto, ninguém sabia de nada. Até ao dia seguinte, foi aí que se soube tudo... a menina foi encontrada por detrás da baliza, foi algum que viu a terra mexida e ficou desconfiado... e o Eulério foi achado no rio, a boiar inchado ainda com o equipamento vestido”.

Por esta altura já não eram palavras que saiam da boca do Ferreira Fonseca, o “Tigre de Metro e Meio”. Eram lágrimas e dores e vinho numa mistura mil vezes repetida. Eu não pude suportar aquilo nem mais um minuto, deixei uma nota grande na mesa, apertei-lhe o ombro com força e saí. Para trás ficaram os restos de um homem, o fantasma de uma velha e uma tasca que já não existe há muito tempo.

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