11.1.09

Prodígio Enjeitado

Então ele mandou pôr dois peixes e cinco pães em cima de uma grande mesa. Ordenou que estes se cobrissem com uma toalha branca e pediu a todos que se afastassem. De seguida ele olhou para o céu através do telhado em ruínas e pediu ao pai, pelo buraco de uma telha partida, que procedesse ao milagre algébrico que fizesse de um peixe vários peixes e de um pão outros pães. Em tudo isto não é certo que de alguns pães não tenha ele feito peixes e de algum peixe não tenham resultado pães. A toalha cobriu os segredos do processo e as gentes raramente são sensíveis às subtilezas quando de comer se trata.
Mandou então afastar a toalha e os assistentes assim procederam, sem nunca descurarem certos modos solenes próprios de tais funções. Ele arregalou muito os olhos, abriu os braços e franziu a testa numa surpresa muito ensaiada, enquanto mostrava à sua frente uma enorme quantidade de pães e peixes em duas pilhas ordenadas. As gentes olharam-se em espanto premeditado e logo começaram a bater palmas e a dar vivas aclamando a aberração gastronómica.
Ele continuava de braços e olhos esgargalados e as gentes gritavam mais e aplaudiam com mais força e davam pulos nervosos com medo de o não contentarem. Depois encheram suas bocas de pão e pedaços de peixe cru dizendo que era bom para em seguida fugirem para um canto e vomitarem sem que ele os visse. Foi assim até chegar a noite e não restarem pães nem peixes e haver grande fastio e todos terem grande vontade de voltar a casa e esquecer quanto pudesse vir a ser esquecido.
Por todo o povoado se mascaram toda a noite ervas e mistelas com o malogrado intuito de combater as repugnâncias dos palatos. Ele partiu pela manhã sorrindo de alto aos rostos agoniados e insones que haviam querido certificar-se do saimento, com uma mão o entregavamao pai em falsos acenos e com a outra seguravam fresquíssimas folhas de hortelã que iam mastigando pelos intervalos dos sorrisos amarelos.
A partir desse dia todos os tectos da aldeia foram remendados. As cabras continuaram a ser criadas como até aí e algumas eram sacrificadas a deuses distantes. Os forasteiros eram tratados a paus e pedras e nenhum se atreveu a voltar. Aos homens que não pagavam as suas dívidas e às mulheres infiéis, era deixado pela manhã um monte de peixe às suas portas e era-lhes reservada uma injúria que as gerações vindouras não conseguirão compreender.

1 comentário:

  1. Tardiamente o comento; tão tarde quanto tarde aqui chego... E também me apetecia ver o nome por trás do escrito, e o rosto por trás da verve... Mas quedo-me, sem enjoos, pela imagem fortíssima de quem sabe por dentro do que diz, assim...
    Madalena

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