22.1.09

Concomitâncias

Tudo aconteceu quando ele tinha apenas vinte e dois anos de uma vida muito como podem ser todas as outras. Uma escala demorada em Paris, uma pausa a caminho de sítios menos civilizados e de um futuro triste, triste. Mas isso só o viria a saber mais tarde, de forma demasiado progressiva para que soubesse reagir.
Um passeio deslumbrado levou-o a todos os sítios a que tais passeios devem levar. Era uma cidade feita para esse efeito, onde tudo era grande, asseado e bem arranjado. Ele que vinha de uma arrecadação sentia-se ali um intruso, na sala de mostrar aos hóspedes. Foi–se espantando e caminhando até ser acometido pela síndrome de Stendhal dos pequeninos, que se manifesta numa vontade louca de beber uma cerveja gelada na esplanada mais próxima.

Estava assim entretido nestas actividades terapêuticas quando se lhe encalhou o olhar num par de olhos perdidos, por ventura pertencentes a um esplêndido membro do sexo oposto. Os sorrisos mútuos foram mais fortes que o embaraço e superaram as diferenças linguísticas, em pouco segundos a distância que os separava tinha o diâmetro de uma mesa de café. O rumor protervo do café e alguns copos de uma cerveja vermelha criaram entre ambos uma intimidade instantânea, bem à medida dos desejos.

Desde que saíram do café até se despedirem nebulentos na estação de comboios, todas as horas foram suas e correram ao ritmo dos sonhos bons. As poucas palavras ditas pareciam vir de um tempo alheio, mais feito de impulsos que de sentidos. O resto foi silêncio, o som de corpos emocionados que pareciam saber mais do que haviam aprendido. Numa mesma noite, ele descobriu Paris, a alegria de um corpo solto e muitas outras coisas para as quais não tinha ainda nome.

No percurso da sua vida essa foi uma noite extravagante pintada em cores de excesso. Um Miró pendurado num salão vitoriano. Nos anos que se seguiram ele fez o que toda a gente faz. Trabalhar, acumular capital, casa, mulher, filhos, aparelhos domésticos e de transporte, promoções, outras máquinas para fazer sabe-se lá o quê, amantes mais ou menos remuneradas, ginásio e fins-de-semana à beira mar. E assim até rebentar, como se costuma fazer.
Foram trinta anos disto. Muitos dias a fingir querenças e a adiar vontades, muitos pequenos prazeres a cobrirem enormes loucuras. Quantas montanhas, mares e serralhos lhe visitaram os sonhos encolhidos ao canto do leito conjugal. Assim foi sendo até que não pôde mais continuar. Filhos emancipados, uma menopausa precoce com direito a cursos de pintura e ei-lo que inventa uma viagem de negócios até à sua bem recordada Paris.

Desceu no mesmo aeroporto que o vira partir e acreditou sentir no ar um cheiro familiar. Passeou o mesmo deslumbre pela cidade condescendente e procurou as pegadas invisíveis de alguém que já tinha sido. Um trânsito em espiral de centro delongado no café ainda aberto. A mesma mesa, a mesma hora do dia, trinta anos passados.
De gestos encadeados pediu a cerveja vermelha e ao pousar o copo dirigiu os olhos para uma esperança remota. E foi assim mesmo, com todas as probabilidades em seu desfavor, que viu as ridículas expectativas reflectidas num espelho da parede longínqua. Era ele que se olhava a si que se olhava. Duas, três, quatro cervejas e ela não apareceu, não se interrompeu o triste caminho óptico de uma vontade que mira um passado. Nada.

Levantou-se com a cabeça à roda e o resto também à roda. Era inútil. Ele sempre tinha sido uma pessoa de fé, mas de nada servia ignorar certas subtilezas do destino.

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