Pediram-me que preparasse um texto sobre literatura e erotismo.
E eu aceitei o desafio, apesar de não ter qualquer ideia sobre o que haveria de
escrever, apesar de sempre ter praticado as duas artes em separado.
Já comi enquanto escrevia, já me ri
enquanto escrevia, mas nunca… enquanto escrevia. Do ponto de vista prático, não
há para mim qualquer relação entre uma coisa e a outra. Mas tem de haver uma
outra relação, porque a literatura mexe com tudo, e o sexo mexe com tudo,
sobretudo quando é bem feito.
Todos os autores falam de amor, alguns do
ponto de vista do crente, outros do ponto de vista do ateu ou do agnóstico. O
amor está presente mesmo quando está ausente, é uma espécie de crença que se
aceita ou se renega, mas que é difícil contornar.
E o erotismo, o que raio é isso? Um amor
vertido em corpo? É o sexo teorizado? É simplesmente a descrição do que se fez
ou se gostaria de fazer em vez de estar a escrever?
O dicionário diz que o erotismo é um estado de excitação sexual, ou então a tendência para se ocupar com ou de
exaltar o sexo em literatura, arte ou doutrina. E eu fico meio desconfiado, e
parece-me que o erotismo é o sexo sem o sexo.
A par da definição de erotismo vem sempre a
definição de pornografia, e é difícil, se não impossível de estabelecer a
fronteira. Será que depende do carácter mais ou menos explícito das actividades
descritas? Será uma medida da beleza do texto? Ou, simplesmente, o erotismo é o
que gostamos de ler em público e a pornografia o que gostamos de ler quando
estamos sozinhos?
Lembro-me de quando uma amiga minha me
aconselhou um livro erótico, ela disse erótico. Era a Casa dos Budas Ditosos,
do João Ubaldo Ribeiro, e eu comprei o livro, li o livro, e quando a encontrei
de novo disse que tinha gostado muito, que era muito erótico, muito erótico
mesmo. E talvez lhe tenha piscado o olho. Ela sorriu e foi à vida dela, mas eu
tinha quase a certeza que o livro era pornográfico. Pelo menos era bom, e até o
aconselhei a muitas outras amigas. Sempre com a mesma frase: É um livro de um
erotismo único, libertário, transgressor. E talvez lhes tenha piscado o olho.
Ao escrever os meus dois romances deparei-me
com um problema clássico - como descrever uma relação sexual? Deveria
pormenorizar tudo quanto era feito? Ou usar a elipse e fazer como um autor
francês que fala de “meia hora de um agradável silêncio”? Usar terminologia
científica como “falo”, “vagina” e “períneo” ou usar metáforas rebuscadas como
“o animoso ariete”, “a mofosa gruta” ou o “virgíneo botão”? Descobri por mim
que, em prosa, um acto sexual só é bem descrito se na realidade estivermos a
falar de outras coisas – a relação de poder entre os intervenientes, as
expectativas de ambos com o relacionamento, o desejo que sentem por outras pessoas,
o medo de que a mulher ou o marido entrem subitamente no quarto. Tudo o resto
parece artificial e abusivo, afinal as personagens sabem melhor do que nós o
que fazer com os seus arietes e os seus botões.
Mas se a prosa teve sempre uma relação de
conflito com o sexo, já a poesia é um terreno fértil propenso a qualquer
devaneio. Pode dizer-se tudo com pouco, sugerindo, intuindo, pode fazer-se
música com os dedos e o desejo de um (ou de mais) corpos.
E eu, que da poesia pouco sei mas muito leio,
eu não entendo o porquê. Porque o mesmo se encontra nos decassílabos
quinhentistas de Camões:
Oh, que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
Como se encontra também nos versos cariocas
de Vinicius de Moraes:
Oh!
Como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Mas afinal o que é isso? O que procuramos e o
que encontramos pela poesia, que é sexo sem ser sexo? Pode um texto ser corpo? Pode um seio
ter a forma da palavra seio? É difícil o amor letrado e é difícil acrescentar
versos ao silêncio. Para escrever o desejo é preciso inventar um lábio cego e
deixar a língua arder.
Afinal, talvez o erotismo seja o único
sinónimo que a poesia aceita - o sexo na ponta no verbo, a sílaba doida, o som
de um corpo que colapsa.
Na Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera
afirma que a sensualidade é a mobilização total dos sentidos. Inspirado nessa
frase eu tive uma ideia, afinal, talvez o erotismo não seja mais do que o
desejo físico pela palavra.
(Texto lido no Encontro de Escritores de
Língua Portuguesa em Natal, Brasil)