30.6.10

O Lopes

Era em muitos aspectos um funcionário exemplar. O Lopes chegava a horas e não falava pelos cantos com a voz surda de dizer mal. Fazia o que havia de ser feito e bem, diligente e sério, era o Lopes. Discreto também, à parte aquilo, claro está, mas discreto. Sempre de fato escuro, a camisa engomada de punhos imaculados, como se o trabalho não passasse dos dedos para cima. O Lopes era o senhor Lopes e homem de família, muito capaz de ir à primeira missa da manhã e deixar uma nota de euro no cesto da espórtula. Quem soubesse não poderia adivinhar, mas assim era, assim.
Às vezes à hora do almoço, subia por esse céu acima e mordiscava a sandes como um deus da ligeireza. O malandro do Lopes. Outras vezes a propósito de nada: ao subir as escadas, numa raiva de más palavras (de resto atiradas ao ar), ou mesmo pelo calor, como um balão que sobe daqui para lá por pressões e correntes secretas.
A gente sente-se muitas vezes sem saber porque é. Coisas que se fazem e que parecem mal sem que más sejam. Como estacionar um Porsche e sorrir à toa para os demais, ou dormir com a Clarinda na festa de natal e pegar ao trabalho com roupa de véspera. Nem é inveja, mas talvez seja inveja.
Um dia escolhemos alguém que foi perguntar. Escolhemos-me a mim, e eu fui. Cheguei-me ao Lopes e num intervalo de dia atirei como fosse nada, “Olha lá, ó Lopes, e isso de levitar?”. O Lopes encolheu os ombros e atirou ar pelas ventas, “Oh, isso… cada um com a sua maluqueira, não é assim António? Cada um com a sua maluqueira. Olha, a pescar perde-se mais tempo”. E tem razão o Lopes, o mais é vontade de implicar.

18.6.10

Obrigado


"Só porque vivemos absortos é que não reparamos que o que nos vai acontecendo deixa intacto, em cada momento, o que nos pode acontecer"
José Saramago
Citado de memória com a voz ainda triste e incerta.

15.6.10

Retrato III

Ela que acena por não ser só silêncio.
Ele que fala de coisas dele, de bola pois, do carro pois, do governo pois. As frases são escalas que começam graves e sobem aos agudos da indignação. Tanta indignação.
Ela diz que sim longe dali, a filha pois, a casa pois, o amante pois.
Nas esplanadas de domingo estendem-se as almas ao sol.

12.6.10

Conto de Dar aos Dedos

Lembro-me bem porque era eu. Dias como festas porque éramos novos e tocávamos à campainha e os amigos desciam à rua onde vivíamos. Todos, sempre.
A bola, a bicicleta, os livros de BD e os outros. Vivíamos em casas por detrás de campainhas e de mães, o tempo enchia-nos os sapatos como areia e valia o mesmo. Os segundos que agora não tenho foram gastos em matraquilhos e em máquinas de dar e receber pancada. Aprendia-se tanto aos murros como a ler romances. De resto, estávamos todos vivos e brincávamos a perder dias e a dar porrada.
O Carlos ainda por lá anda, deve andar, nunca mais ninguém o viu. O Carlos era uma criança dotada, sabia mais que nós e punha o nome nas máquinas. Para mim ficou ali, criança dotada para sempre, agarrado à máquina a olhar para os parvos em que nos tornámos. Somos tantos a ser parvos e o Carlos a dar pulos até ao tecto e a deixar o nome de arte: “Maléfico”.
O Pedro gostava de carros, agora é só um que tem um carro. O Rui queria ser cientista e hoje é triste e cientista. Eu também tinha as minhas ideias e vontades, tão vagas, tão gerais, que quase todas se cumpriram. Até estar com uma mulher e fazer porcarias como nas revistas. As mulheres não têm onde deixar o nome mas algum dia alguma me há-de calhar com tatuagem nos rins: “Maléfico” e o cabrão do Carlos a rir-se de dotado.
Às vezes cruzamo-nos mas já não sabemos falar, tontos e torpes que ficámos. Já ninguém sabe truques, os segredos que temos dormem connosco e é como se não servissem. A crescer aprendem-se artes e esquecem-se truques, ficamos sábios e pouco espertos. Só que não ficamos sábios, é isso, ficamos só assim.
A vida é que nos tramou, a idade é que nos tramou, o mundo é que nos tramou, nós é que nos tramámos. O Carlos não. Tenho uma cicatriz na testa e outra na perna, depois virei-me para dentro. O que vai num corpo tão grande, faltam-me truques para o corpo e para tudo o que tenho.
Resisto a mariquices, saudades e tal, mas às vezes falta-me uma campainha qualquer, carregar num botão e ouvir uma voz eléctrica que pergunta para que eu responda: “sou eu”. Um amigo a descer escadas e eu escondido a preparar um susto. Depois porrada e correr depressa a fugir ou à procura de qualquer coisa.

10.6.10

Acordar um dia XLI

Acordar um dia disposto à dádiva. Sair de casa com olhos de puto e a rir.
Dar-me a cheirar às flores e ladrar aos cães porque apetece.
Subir a uma escada e abrir os braços para fazer sombra às árvores.
Soprar no vento e cantar aos pássaros.
Deixar que o chão me percorra os pés.
Uma vez por outra é bom que o mundo se divirta.

8.6.10

Lugares de Nada III

Trinta pessoas seguem na mesma direcção, à mesma velocidade no mesmo instante. Como não se conhecem, inventam um comboio. São ainda assim trinta pessoas que seguem na mesma direcção, à mesma velocidade no mesmo instante.
O progresso autoriza muitas perplexidades. 
Longe do solo as trinta pessoas imaginariam um avião, mas é gente simples que nem sabe voar.

3.6.10

Os Relógios

Quando fui pequeno pensei nos relógios e em quem trabalhava, pequeno e mudo, dentro deles.
Um rapaz delgado e nervoso ocupava-se então do ponteiro dos segundos. Um homem como outros encarregava-se dos minutos, sem brilho, sem vergonha. Um velho gordo e lento, talvez cego, empurrava as horas de quando eu fui pequeno.
Depois eu cresci por cima do tempo e estou aqui como sou, ao vosso lado e sozinho, a moer o espanto de descobrir que afinal todos trabalhamos para os relógios.  

2.6.10

Lugares de Nada II

- Gosto de comer sozinho entre gente que não conheço, sinto que a vida passa mais devagar e se enriquece de textura e pormenores.
- Foste outra vez ao "Reino da Picanha" do centro comercial?
- ...
- A textura e os pormenores não serão manchas de gordura?
- Noto também que nessas circunstâncias acabo por odiar toda a gente ou então amá-los a todos, como se fossem um primo por afinidade.
- Ninguém tem amor por um primo afim.
- Sim, mas refreamo-nos e não lhe espetamos a faca de cortar carne.
- ...
- ...
- Devias passar a comer em companhia.
- Devia passar a comer sandes.
 
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