21.2.11

Arte Poética I


Atira o televisor do alto da cabeça,
Os jornais também, mesmo os bons
Os amigos chatos e alguns dos outros
Amor à pátria, ao clube e ao partido
As notas maiores que tiveres no bolso
Guarda as moedas, sobretudo as pretas
Do emprego, só o que lhe é estranho
Do amor gemidos, dor e vontade
Faz aviões dos poemas alheios
Sopra-os com ideias e certezas
De ti pouco, só mão, sexo e olhar
O que te resta é poesia

12.2.11

Manhã

Que momento é este
em que tu de um lado
e eu de outro, daqui  
te vejo e me sossego
Vamos e vimos de tanto
lugar, abrigados num verbo
único que é segredo nosso
Somos bichos de ser assim
braços brancos onde a luz
que venha há-de poisar
Temos curvas dóceis de sono
e um desenho de pernas ocas
onde cabe tudo, até amor

11.2.11

desses que vão em cantigas

sou desses que vão em cantigas
doido e leve como homem vivo
um sem abrigo de ninguém de nada
entre mim e o vento fora e cá dentro
à espera das horas como outros do táxi
tenho bolsos cheios de mãos abertas
tenho um sonho doente que me sonha
como ruas me atravessam e olhos
me não vêem porque eu me fecho
vivo deitado na incerteza dos dias
e sinto nas costas e no sono leve
o palpitar de pernas e gente em cima
suspenso como pó nuvens ou fumo
mais do sopro do que dos dedos
um voo à espera de um pássaro

8.2.11

Combinatória

Estremecido de tragédias, sujo de medo e de vida (a morte dos outros chega-nos sempre em vida), tacteava os dias como um cão que sente a trovoada. Encostado aos muros, recolhido em cafés e tabernas, deitado até tarde no exercício fraco de sentir (não existem pressentimentos, só cães para quem as trovoadas chegam mais cedo).
Fazem-se descobertas admiráveis ao desrespeitar a realidade, livres disso e de certezas. Como do que acontece, ou do que não é porque deve ser mas porque assim calhou. Há coisas importantes porque as vimos, outras porque as pudemos imaginar.
Por exemplo um homem que atravessa um mal e agora descansa, vivo e de olhos abertos. Mas a morte do homem está também presente, porque foi chamada e esperava-se. Felicite-se o homem e chore-se também, não há por que ceder à sorte.
Os acidentes que se escondem no banal: as quedas dos graves, crimes de sangue ou de carne, um desvio de trajectória, um raio que também cai (quanto pesa um raio?). Num mesmo instante, o que é e o que pode ser, o corpo imóvel e a boca fechada, igual fazer ou não fazer, ir ou não ir, et caetera.
E os deuses, coitados, os deuses são como cães assim, ou homens ou árvores cansadas. As cabeças escondidas no lençol e o dia imenso (dos deuses, dias como bombas) a esgravatar a janela.
Por entre as rezas de um acidente há vozes que sobem e outras que descem, os deuses também são gente, a gente também é gente, et caetera. 

5.2.11

Olha que os nossos velhos sabem muito
com as mãos e com poemas que vêm
de lugares esquisitos para onde eles olham
Desde que foram à lua… e têm razão
está tudo escangalhado, não vês?
está tudo cheio de entulho, e o espaço
e as estrelas, e os sonhos também estão sujos
Já não se pratica a aventura do lugar
já ninguém diz adeus por muito tempo
só por morte ou tédio ou indiferença
porque nada é longe ou estrangeiro
Aventuras só nos dias, ou no amor
passeamos por horas incertas e rombas
por corpos estranhos e alheados
estive ontem em ti e perdi-me
Temos todas as condições para um milagre
estamos a uma ideia do infinito, de uma coisa
linda que não sabemos imaginar
Sujámos o ar e deus e tudo
sujámos as cabeças e o resto
sobram-nos olhos e falta-nos o olhar
 
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