22.4.09

Acordar Um Dia XXV

Acordar um dia sabendo-se mortal. Ainda assim ser capaz de sair da cama e viver as horas sem tempo, como as crianças e alguns loucos.
Ao final do dia fazer amor com vontade ou ter vontade de amor. Depois cantar coisas antigas e fazer manguitos à noite.

20.4.09

O Tigre de Metro e Meio

“Tantos, muitos e bravos. Vão sendo lembrados por aqui e por ali, num jantar de gala, nas celebrações oficiais, enfim, essas merdas. Muitos são ainda hoje conhecidos, o Bernardes, o Mendes de Brito, o Curado Cruz, o Ravinas, o Rocha Melinho, enfim... essa malta. Mas o nome dele parece que desapareceu para sempre, uma rasura na ficha de jogo e outras mil na memória de quem viu. Maldito jogo e maldita vitória”

Dizia-me estas coisas e bebia mais vinho. O lugar era uma tasca da baixa que eu acreditava estar encerrada há pelo menos sete anos. Talvez estivesse para mim, mas não para o Ferreira Fonseca, o “Tigre de Metro e Meio”. Setenta e cinco anos rijos e cirróticos como poucos. Dizia-me estas coisas e bebia mais vinho.

“O Joaquim Eulógio era de uma raça aparte, uma raça aparte, ouviste? As avarias que ele fazia com a bola não eram deste mundo, era o que a gente pensava e era verdade. O homem tinha mistério, aquilo era pacto com o Sujo, mas a gente não sabia. Foi um ano excepcional, limpávamos os jogos todos. Por mim não passava nada, nem bola nem pernas nem nada! Ouviste? Nada! O Expedito governava jogo, com os olhos lá para a frente punha a bola nos pés de qualquer um, sacana do Expedito... Depois vinha o Eulógio e ela estava lá dentro em menos de um ai, tinha uns pés que faziam renda e um remate que ai Jesus. Um diabo é o que ele era, um diabo ou vendido ao diabo que é a mesma coisa”.

A tasca estava vazia e os berros do Ferreira Fonseca faziam eco. A velhota que servia os tintos vinha do nada, de uma escuridão cheia de objectos estranhos lá por detrás do balcão. Vinha, servia o vinho sem uma palavra e voltava para o escuro.

“Alguma coisa a gente sabia, havia histórias... a unha de javali pendurada ao pescoço, as rezas numa língua esquisita... latim ou chinês ou que raio era aquilo... e depois aquela coisa, nos quartos-de-final, viu o Ribeiro e jurava pela mãezinha. Quando um homem jura pela mãezinha é porque viu ou então é parvo... mas o Ribeiro não era parvo e viu. Estava atrás da baliza, já todos tinham ido para casa e ele ali, em tronco nu com uma faca na mão e uma galinha na outra, uma galinha preta, preta ouviste?”

A velha tinha ligado o rádio e ouvia missa, às sete da tarde numa quinta-feira nenhuma rádio passa missa, mas no rádio da velha sim. O cheiro das cigarrilhas do Ferreira Fonseca começava a deixar-me agoniado, ou talvez fosse o vinho, mas eu queria ouvir o resto da história. Dei mais um trago de olhos fechados e devolvi-lhe a atenção, parecia estar a chorar mas talvez não estivesse.

“No dia da final tínhamos as tripas às cambalhotas, aquilo ia ser o jogo mais importante das nossas vidas, era daquela vez ou nunca mais... a equipa era boa mas não se ia aguentar, não havia massa, os gajos de Lisboa já tinham comprado metade do plantel. Andávamos todos de cá para lá como baratas tontas, mas ele não, estava sentado sozinho com cara de abantesma e calado que nem um rato. O mister chamou e lá fomos para o relvado. Eu nunca tinha visto tanta gente... bandeiras e berros e gaitas e quê... um arraial... e a gente à rasca.
O jogo, já se sabe, foi o que foi. Começámos a correr e nem tripas nem gente nem nada, só víamos a bola e a baliza. Os outros coitados nem sabiam para que é que os tinham chamado. Foram cinco bem aviados, cinco, ouviste? Parecia a feira popular, mais uma corrida mais uma viagem e toma lá disto... dos cinco três foram do Eulógio, pé esquerdo, pé direito e uma cabeçada mais certeira que um taco de bilhar, limpinho. O homem estava em todo o lado, nem Deus nem nada, aquilo é que era onipotência e onipresência e pai nosso que estás no céu, que no campo só estava o Eulógio. Foi o herói do jogo, e das vidas daquela malta...Acabou a função e parecia o fim do mundo, um mar de gente aos gritos, os garotos e as miúdas a rasgarem as camisolas e o champanhe a descer pelas goelas... naquele tempo não havia vergonha no beber... estávamos nisto e alguém quis saber do Eulério, onde está o artista? Onde está o artista d’um cabrão?”

Mas já ninguém foi capaz de o ver, só mais tarde, no dia seguinte... todos procuravam e chamavam por ele mas nada... até que veio a mulher, aflita, com uns olhos que metiam medo e a repetir as mesmas perguntas vezes sem fim, “Onde está ele?”, “Onde está a minha menina, ele tinha trazido a menina, alguém viu a minha menina?” ninguém tinha visto, ninguém sabia de nada. Até ao dia seguinte, foi aí que se soube tudo... a menina foi encontrada por detrás da baliza, foi algum que viu a terra mexida e ficou desconfiado... e o Eulério foi achado no rio, a boiar inchado ainda com o equipamento vestido”.

Por esta altura já não eram palavras que saiam da boca do Ferreira Fonseca, o “Tigre de Metro e Meio”. Eram lágrimas e dores e vinho numa mistura mil vezes repetida. Eu não pude suportar aquilo nem mais um minuto, deixei uma nota grande na mesa, apertei-lhe o ombro com força e saí. Para trás ficaram os restos de um homem, o fantasma de uma velha e uma tasca que já não existe há muito tempo.

17.4.09

O Marcelo, (Nona Parte)

Fomos até um sítio de gente alegre. Bebemos algumas cervejas enquanto o Marcelo comentava a população feminina do bar. Não pude deixar de admirar o seu poder de observação e a precisão notável com que isolava os mais ínfimos pormenores. Era capaz de conhecer todo o passado de uma mulher e de prever o seu futuro partindo de coisas mínimas. Uns sapatos gastos, um anel de imitação, as unhas roídas e mal pintadas, um suspiro discreto. Qualquer coisa lhe servia para contar histórias mais ou menos sórdidas que se faziam verdadeiras pela qualidade da narração.
Quando se lhe esgotaram os espécimes e a imaginação o Marcelo virou-se para mim, mudou a expressão facial, baixou o tom de voz e passámos então às coisas sérias.
“Eu tenho um plano. Um plano que te pode mudar a vida e pode mudar-te a ti. Se aceitares fazer tudo o que te digo, como eu te digo e quando eu to digo, verás que daqui a algumas semanas, um mês no máximo, serás um tipo diferente. Pode até acontecer que dês em ser feliz, mas isso não ouso afirmar, desconfio do teu talento para a depressão. Ainda assim acho que só tens a ganhar, não podes ficar muito pior do que já estás e asseguro-te que vai ser uma experiência levada da breca. Uma coisa diferente, percebes? Uma coisa diferente”

Perguntei-lhe que plano era esse, embora me apetecesse dizer logo que sim. Sentia dentro de mim o tremor que antecipa as quedas nos abismos ou os grandes feitos, pelo menos assim imaginava, já que eu não tinha qualquer experiência em tragédias desse calibre.
“O plano... O plano é simples. A primeira coisa a fazer é arranjar dinheiro, algum dinheiro. Culpa a sociedade ou a natureza humana se quiseres, mas sem dinheiro és quase tão invisível como eu. Vamos primeiro tratar disso e depois passamos à segunda fase”. Parecia-me um raciocínio difícil de rebater, fiz-lhe sinal que continuasse enquanto apoiava os cotovelos na mesa em posição interrogativa.

“Ora bem, acontece que eu sei de um sítio pouco público onde todas as sextas-feiras se reúnem algumas pessoas para se entregarem à prática do jogo a dinheiro. O acesso à mesa é particularmente restrito, mas mencionando alguns nomes que eu conheço ser-te-á concedido o benefício da dúvida. Ali joga-se póquer, e joga-se forte. São todos jogadores experientes, capazes de dobrar colheres com os olhos de bluff, mas têm a desvantagem de não possuírem amigos invisíveis, e é aí que reside a nossa margem de lucro. Eu vou-te explicar as regras e a gíria da modalidade, depois vamos trabalhar na tua personagem e assim que estiveres pronto tentamos a sorte. O mais importante é que sejas capaz de manter um ar credível enquanto vês os sinais que eu te faço, eu logo te digo se deves ir a jogo ou desistir. É simples, é fácil e vai ser uma experiência levada da breca... um coisa diferente, percebes?”
Percebi. Depois senti um calafrio pelo espinha abaixo e um tremor esquisito no olho esquerdo. Eu não estava habituado a essas coisas, ficava nervoso só de as ver na televisão, mas o Marcelo dava-me segurança e tinha um olhar de tal forma esgazeado que me seria impossível dizer que não. Uma experiência levada da breca, com certeza meu vaporoso amigo, uma coisa diferente pois então.
(continua)

14.4.09

Acordar um Dia XXIV

Acordar um dia com uma frase do Cesariny que eu gostava de ter escrito.

"O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é"

O sacana do Mário roubou-me a frase 20 anos antes de eu pensar nela depois de a ter lido num seu livro.

13.4.09

O Marcelo (Oitava Parte)

Quando saí do quiosque, na circunstância de ser quem sou, vi o Marcelo. Esperava-me encostado a uma parede e pela sua expressão parecia ter percebido tudo. Pela expressão e também por todas as perguntas maliciosas que me fez mais tarde. Tinha ido resolver alguns assuntos, rever passados e cheirar o rio que era ainda o mesmo. Quis saber o resto do meu dia mas mudou logo de assunto, por delicadeza ou desinteresse. Trazia nos olhos um brilho de novidade; ideias provocadoras, maldades previstas, um brilho desses. Caminhámos lentamente pela rua, a par e passo com as suas curiosidades e o seu interesse infantil por tudo quanto via.

Passámos por uma sapataria e ele ficou a olhar para uns sapatos feitos à mão. Indicou-mos e disse que me deveriam ficar bem, eu sorri um sorriso pobre e afastei a ideia com um aceno vago. Repetiu o gesto ao passarmos por outras montras, relógios, gravatas, vinhos importados. Expliquei-lhe o que ele já sabia e voltou-lhe o brilho aos olhos. “Mas gostavas de ter, não gostavas?” E eu que sim, mas que eram objectos para outros, eu nem era materialista, bastava-me ter o que comer e os trocos trocados em tabaco. Então ele ganhou uma expressão nova e olhou-me como se fosse um evangelista ou um vendedor de outras coisas, “e a rapariga do quiosque, também é para outros?”. Eu fiquei sem resposta, mas devo ter balbuciado qualquer coisa, que relação havia entre os sapatos e a rapariga? Estas foram as palavras de Marcelo, um discurso demasiado coerente para ser improvisado:

“O teu problema, meu caro amigo real, é tu não perceberes o que queres nem como o podes conseguir. Andas aí a empurrar os dias em pantufas, a viver envergonhado por ocupares o teu espaço e nem és capaz de perguntar a uma mulher qual o seu nome. Tens medo de incomodar o mundo pelo simples facto de existires, por isso segues mudo e triste e pobre, a pedir desculpa a um Deus em que não acreditas por teres uma vida que não praticas.
Os sapatos da loja e a rapariga do quiosque representam exactamente a mesma coisa, algo que tu queres mas finges não querer porque não sabes como o conseguir.
Por sorte ou por qualquer outra coisa tens-me a mim, um pedaço de um teu sonho que tu não conseguiste apagar a tempo. Estou aqui, fugi, e agora sou eu que te vou guiar a realidade.
Eu tenho um plano, vamos beber uma cerveja num sítio de gente alegre que eu já te conto tudo”
(continua)

7.4.09

Acordar um Dia XXIII

Acordar um dia sem ela.

De seu apenas os cheiros, um desenho de batom e a cova no sofá.

E o resto.





Ilustração de Marco Mendes

6.4.09

O Marcelo (Sétima Parte)

A tarde passou isenta de manifestações psíquicas. Pela minha parte abstive-me de pensamentos estranhos e contive a curiosidade. Essa curiosidade minha que é já de si bastante contida, mais feita de desejos do que de persistências. Estou habituado a não chegar com o intelecto a certas miragens do espírito e parece-me tudo natural. Dos fenómenos da alma não percebo eu mais do que dos do corpo, mas continuo a comer, a sonhar e a ter comichões. Em algumas horas apaixono-me e nunca sei se o faço com o corpo que sinto ou com a alma de que desconfio. Nessas alturas ardem-me partes de fora e de dentro e a fronteira torna-se difusa e irrelevante. A minha paixão é assim. Depois passa-me e volto a não sentir nada e como e sonho e coço-me onde me devo coçar.

Às seis horas da tarde eu deixo de trabalhar e são agora seis horas da tarde. Arrumo as coisas feitas e as coisas por fazer, depois desligo o computador, fecho a janela e visto a gabardina. Verifico se tenho tudo o que preciso, desligo a luz e fecho a porta. Despeço-me dos meus colegas que gostam de ficar mais uns minutos, aqueles poucos minutos suficientes para não serem os primeiros a sair. Os minutos suficientes para me poderem olhar com mais alguns centímetros de altura e outros tantos de dedicação. Mas às seis horas da tarde eu deixo de trabalhar e são agora seis horas e dois minutos.

Saio do edifício e sabe-me bem cheirar o vento. Nem é bem um vento, é uma brisa, um desses ares de verão que se passeiam devagar e cheiram a longe e ao passado. Eu caminho devagar mas com os passos certos que me levam até ao quiosque “Império”, é lá que compro o tabaco de cada dia e o jornal dos sábados. Também é lá que trabalha uma certa rapariga, da qual não sei o nome nem quase nada.

Se eu não fumasse e não lesse o jornal aos sábados, talvez passasse a mastigar pastilhas ou a jogar no loto, talvez comprasse selos, carteiras de cromos para um sobrinho ou livros de palavras cruzadas. É que eu gosto de vir ao quiosque “Império” e gosto de esperar que a rapariga me atenda e que ela sorria para mim. Gosto que me pergunte “então é o costume?” e gosto de lhe dizer que sim e sorrir-lhe também. Dão-me sempre ganas de falar com ela, de partir de algum tema banal e fazer como as cerejas, ir pelas palavras fora pendurando umas nas outras até ela ter um nome e eu poder dizer “por acaso tem mesmo cara de...”.
Naturalmente, acabo sempre por lhe falar do tempo, com pequenas observações idiotas e banais às quais ela só pode responder “sim” ou “pois, nesta altura já se sabe”. Mas ela fá-lo com um sorriso novo e eu fico contente e esqueço-me das cerejas, digo-lhe “boa tarde e até amanhã” e saio satisfeito como um infeliz.
(continua)

5.4.09

De um Homem que Foi Visto sem Ver

As coisas mais belas passavam-lhe ao lado e ele assobiava para dentro e pensava em mistérios. Ele não via as coisas belas. Importa dizer que ele não as ignorava porque fosse cego (embora o fosse), também não era por estar embriagado (embora estivesse embriagado). Fazia-o porque a beleza dessas coisas belas pertencia a outros, à natureza, a todos. Os seus pequenos mistérios incompletos e mal desenhados eram só dele e estavam destinados a ser esquecidos.
Talvez com benevolência, talvez com um outro sentimento frágil, mas qualquer um poderia perceber que apesar de tudo ele não era parvo nenhum. Talvez um pouco... talvez, mas parvo não era.

3.4.09

O Marcelo (Sexta Parte, Um Fado Marcelo)

À sorte pelos desejos
De ardores e de bocejos
Asas tortas de voar
Mãos que sentem e não tocam
Risos doces que sufocam
Em vontades de beijar

Mal vivido mal sonhado
Um ser misto e roubado
Num incerto sentimento
Canto surdo de querer
Mais da vida do que ser
No durar de um momento

São passos de uma dança
É um golpe de vingança
Palavras ditas à toa
Neste sangue alguém morreu
Se não é um fado fui eu
E um amor que já não voa
 
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