12.3.09

Coisas de Aqui

Mas às vezes não te apetece chorar? De chorar muito como se não precisasses de fingir tantas pequenas felicidades? Mas não acordas a meio da noite encharcado num sonho mais feito de ti e de dores do que todos os teus acordares?
Quantas vezes comes sozinho? Quantas vezes comes completamente sozinho? Quantos foram os jantares a um por falta de comparência? Não de outros, mas da parte de ti que deseja e aceita companhia?

A verdade é que tudo e todos parecem ir andando. O mundo vai sendo e tantos nele. As coisas acontecem, sucedem-se, criam-se e desaparecem e com elas, por entre elas, estão mãos, pernas e corações que batem a tempo indeterminado. Todos batem a compasso em esforços de vontade privada de desejo. Mas o que é importante é que as coisas vão acontecendo, agora isto, depois aquilo e a seguir nada. Sim, porque as coisas sobrevivem aos corações.

Mudemos de assunto.As tristezas não pagam dívidas e tu tens tantas, tantas dívidas e nem sabes como pagar ou que moeda usar. Dívidas para com outros, dívidas para com todos, dívidas para com um par de olhos miúdos que um dia verteram mais lágrimas do que tu poderias enxugar com as tuas palavras mal ditas e nunca sentidas. E mais as dívidas morais, os débitos originais a um Deus que compraste e a quem não dás uso. Depois tens também as dívidas para contigo, as promessas mudas e pequeninas, convictas e à má fé, os projectos bem desenhados e pensados com tanta miúça que pões à frente de ti, como se fosses um burro cego com tanta cenoura que já não vê nada à sua frente e trota sem saber para onde vai.

Mudemos novamente de assunto. Falamos do que quiseres. De que falam as pessoas? De que falas pela manhã com os outros como tu e os outros como eu enquanto mexes a bica e piscas o olho à empregadita? Do tempo? Dos filhos? Talvez fales do governo... E é bom falar do governo, é para isso que votamos, para termos alguém que escolhemos que nos possa entreter e que nos leve as culpas que nos sobram. Os reis tinham bobos e nós, democratas, temos um governo que é eleito livremente com bónus de gravata e muito mais habilidades. O espectáculo é caro, mas já que agrada a todos vale bem as horas de tédio que lhe deixamos cada mês. Abençoados sejam esses senhores de fato escuro e voz colocada a quem damos o que não temos para recebermos o que não nos faz falta.
Mas estende o ouvido e diz-me do que falam na mesa ao lado. Falam de quê? De televisão? E eu que me ia esquecendo... Telejornais, futebol, telenovela, debates actuais, e desgracinhas e itas e a puta que os pariu. Não é assim? E porque haveria de ser de outro modo? Se temos de ir andando, que seja assim, com o embalo de coisa nenhuma e um estimulozito de vez em quando que dê pena ou dê riso, raiva ou tesão consoante os horários e o nível socio-económico que é preciso entreter. E é assim que nos vamos também informando, que vamos sabendo que se morre muito bem no médio oriente mas que aqui também não se está mal, que a vida é como a ficção e a ficção é como a vida e que tanto uma como a outra estão cada vez mais tristes e cheias de imaginação. Assim apodrecemos devagar e sem culpas a cantar em Karaoke uma vida que sabemos de cor.
Alguma vez te apercebeste que nada pode impedir a tua dedicação no emprego mas que qualquer merda serve para te distrair da tua vida?


Havíamos de ir andando não é? Eu pago a conta se tu prometeres esquecer tudo o que eu te disse. Faz de conta que eu estava bêbado, se não estava vou estar a seguir, não fui mais do que um prelúdio de mim mesmo. Sabes há quanto tempo eu não estou sóbrio? Verdadeiramente sóbrio? Sabes há quanto tempo eu não sei o que é ter uma ideia que não me nasça já intoxicada? Há muito, há muito tempo. Mesmo as minhas memórias começam a ficar sujas deste ar imundo que respiramos à falta de coisa melhor. Mas as coisas vão andando não é? E nós com elas, nós sempre com e por dentro delas.
Olha, dá lá cumprimentos meus quando me vires porque eu sei que dificilmente me encontro por aí.

5 comentários:

  1. Se eu comprar a idéia de que é a embriaguez que te torna lúcido, vou querer-te ver ébrio pelo resto de tua vida.
    Belo texto, desencantado, como desencantada é a nossa existência que se deixa passar.
    Abraço

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  2. "Alguma vez te apercebeste que nada pode impedir a tua dedicação no emprego mas que qualquer merda serve para te distrair da tua vida?" ... se não fosse porquê... roubava-te descaradamente esta frase. já me tinha apercebido, sim, mas dito desta forma, não.

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  3. Caro Musgo, podes roubar a frase à vontade... Abreijos do outro lado dos Alpes

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